O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos

1.  A cidade entre luzes e sombras

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Recife, cidade de luzes e sombras. Fotografia do acervo do Museu da Cidade do Recife. Todos os direitos reservados.

Os seres humanos se diferenciam no comércio do mundo por serem dotados da capacidade de falar, de usar a linguagem, de se comunicar através de uma narrativa. Os humanos são seres que cantam e que contam. Seres que contam aquilo que para eles conta, o que tem importância, o que se destaca, ganha forma, visibilidade e dizibilidade entre as coisas do mundo. Ao narrar, se fazem escolhas: nem tudo é dito, pois nem tudo é visto, nem tudo se torna presença. Mesmo entre aquilo que se vê, seleções são feitas a partir de critérios políticos, ideológicos, éticos, estéticos etc. Em tudo aquilo sobre o que a narrativa humana lança a sua luz, de tudo aquilo que a narrativa faz ver, algo permanece nas sombras, algo de obscuro se passa. Se para contar, para exercer essa atividade fundamental na construção do mundo humano, homens e mulheres precisaram desenvolver a capacidade de registro, de fixação do que ocorre (porque o que não é fixado não pode ser contado), recorrendo, inicialmente, à faculdade da memória, logo desenvolverão o que se pode chamar de uma memória artificial ou complementar, suplementos de memória através da criação de técnicas, métodos e tecnologias mnemônicas ou de registro (Para o filósofo Henri Bérgson[1] é a memória que fixa as fugidias sensações que nos são trazidas pela percepção sensorial. Os sentidos percebem e a memória significa e faz ficar). Desde os hiponematas, na antiguidade, até os fichários contemporâneos, os homens não pararam de criar maneiras de tentar registrar, guardar, acumular, tornar presentes a diversidade das coisas e dos acontecimentos do mundo natural e social, para poder com eles narrar, dizer, contar esse mesmo mundo. Palácios da memória, mapas, atlas, enciclopédias, dicionários, fichários, coleções, arquivos, museus surgiram na esteira desse desejo humano de ter toda a diversidade do mundo e dos eventos humanos à sua disposição para poder ver e dizer.

Nada desafiou mais a capacidade de contar, de narrar dos seres humanos do que a realidade da cidade, notadamente da metrópole moderna. Espaço do artifício humano, espaço que materializa, como nenhum outro, a capacidade dos homens de criar o seu próprio mundo, de criar um ecossistema próprio para habitar, a cidade, na sua crescente diversidade, multiplicidade, complexidade e velocidade, tornou-se um desafio para o desejo humano de dar sentido de conjunto ao que se vê, ao que se sente, ao que se vive, ao que se experimenta. A metrópole moderna, como já visualizava Georg Simmel[2] no início do século XX, em sua multiplicidade de sensações, leva os seus habitantes a ter uma visão cada vez mais fragmentária e parcial do que se passa à sua volta. A experiência de viver em uma metrópole se torna amedrontadora na medida em que ela não pode ser mais dominada com um só golpe de vista, que ela dificilmente pode ser dita em toda a sua complexidade. O medo e a paranoia tendem a crescer à medida que um número maior de zonas de sombras, de seres e espaços estranhos passam a compor o tecido da cidade. Esses homens e mulheres, de nervos superestimulados, tenderiam a adotar uma postura blasé, um distanciamento defensivo em relação à balbúrdia dessa realidade em ebulição, mas, ao mesmo tempo, tenderiam a redobrar os mecanismos de vigilância. A busca pelo controle dessa colossal diversidade de coisas e seres levaria os homens e as mulheres a se manterem o tempo inteiro em estado de alerta, preocupados em adotar atitudes e práticas de defesa, contra inimigos que, cada vez mais, perdem uma fisionomia ou um rosto reconhecível e fixo, para se tornarem uma grande mancha ou massa indefinidas.

A cidade, como nos fala Richard Sennet[3], é composta de corpos humanos e de espaços, a cidade, desde os primórdios, reúne a carne e a pedra. A cidade foi, desde o início, constituída de um conjunto de espaços pensados para serem habitados e para serem praticados pelos corpos humanos. Há uma analogia entre como uma sociedade pensa o corpo dos homens e como ela constrói os espaços que dariam forma ao corpo da cidade. A cidade ganha forma, ganha corpo, tendo os corpos humanos como modelo e inspiração. A partir do século XVIII, com o avanço nos conhecimentos anatômicos, com a emergência da ideia de organismo, a cidade passou a ser pensada e organizada para ter o que seria uma forma orgânica, com cada um de seus espaços exercendo uma dada função, sendo, portanto, funcionais. No entanto, ao ser assim pensada, a metrópole moderna, com sua proliferação desordenada de espaços não planejados, passa a ser vista e tratada como um organismo doentio, como um organismo que possui em seu interior espaços patológicos e patogênicos (a presença crescente do saber e do poder médico na gestão das cidades emerge e reforça essa percepção).

Sempre que se pretendeu narrar a realidade de uma cidade, sempre que se pretendeu transformar a cidade em texto ou sempre que se tentou dar a ler o texto de uma cidade (Michel de Certeau[4] nos fala do caráter narrativo e escriturístico do texto urbano) teve-se que levar em conta os espaços que a constituíam e os corpos humanos. Mas quando se vai contar uma cidade, há também que se escolher aqueles corpos e aqueles espaços que contam.

A cidade narrada, a cidade contada, mesmo a cidade mostrada, dada a ver, através de tecnologias como a fotografia ou o cinema, nasce de escolhas. Entre a diversidade de corpos e espaços, de cenas e cenários, de carnes e pedras que constituem uma cidade, escolhas são feitas na hora de narrar ou figurar a sua cartografia. Nem tudo aquilo que se vê e se registra, nem tudo aquilo que se sabe ou se descobre numa cidade, deve ser dito. Na superfície lisa da narrativa que faz ver e diz uma cidade, muitas camadas de não dito, muitos corpos e espaços mergulhados na escuridão vêm se alojar. Na cidade que se diz e na cidade que se torna visível, cidades invisíveis, como diria Ítalo Calvino[5], permanecem como o recalcado, como o sintoma de outras possíveis cidades, como fragmentos a-significantes do texto urbano.

 

 2. Uma geografia paranoide

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Organograma da vigilância da DOPS/PE. APEJE-PE, Fundo SSP/DOPS-PE.

 

Ao nos depararmos com o arquivo da antiga Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) do Estado de Pernambuco, ao nos defrontarmos com as imagens e, muitas vezes, com os breves dados e textos que indiciam, que dizem, que narram em poucas linhas, em pequenas fichas ou em alguns poucos volumosos prontuários a vida de muitos corpos que habitaram ou que apenas passaram pela cidade de Recife, entre o início dos anos trinta e os finais dos anos cinquenta do século XX, que se referem a distintos e variados espaços da cidade, vemos outras possíveis cartografias da cidade, outras possíveis narrativas da cidade se desenhando. Nas mais de 125.000 mil fichas que sobraram de um arquivo que deve ter sido bem maior, chamou-nos a atenção a presença de uma categoria de corpos e espaços, que parecem ter merecido especial atenção daqueles que pretendiam, naqueles anos de ditadura do Estado Novo, de Segunda Guerra Mundial, mesmo nos tempos ditos de redemocratização, vigiar, controlar e dizer de dado modo a cidade, ou seja, a categoria dos artistas e os espaços por onde circulavam e exerciam seus ofícios, que perfazem 403 fichas e 28 prontuários. Para além da narrativa oficial, que tentava dar conta e dizer o que era a cidade do Recife, para além do Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife, em que o grande intelectual da cidade, Gilberto Freyre constrói uma cartografia hegemônica para a cidade, escolhendo espaços e corpos que mereciam ser vistos e ditos pelos e aos turistas que desembarcavam na cidade, esses corpos e nomes, esses breves relatos sobre o que chamamos de artistas ‘mundanos’, mantidos na obscuridade de um fichário, e os espaços da cidade que neles são descritos, constituem a possibilidade de se desenhar outras geografias, outros mapas, outras cartografias possíveis para essa cidade. O objetivo desta pesquisa e deste site que recolhe e disponibiliza esse arquivo, constituído por este conjunto de fichas e prontuários que registraram e indiciaram a vida desses artistas, é o de permitir que outras narrativas da cidade possam ser feitas, que outras camadas da vida e da realidade da cidade possam ser manejadas, que se possa fazer uma arqueologia dos distintos tempos, espaços e sujeitos que construíram e constituíram, em sua multiplicidade e dispersão, cartografias outras para essa cidade dos arrecifes.

Empreendimento paranoide, nascido do pânico das classes dirigentes com o fenômeno urbano, com a nova realidade econômica, política e social que o capitalismo metropolitano instaurou, qualquer recorte que façamos no arquivo da DOPS, nos permite desenhar o que seriam geografias do medo e da suspeita (Mapa da geografia paranoide); nos permite visualizar que corpos e que espaços, que nomes e que práticas, que discursos e que ideias metiam medo, causavam suspeitas entre aqueles que compunham as elites econômica, política e intelectual de cada período. Na sua lógica classificatória e taxonômica, herdada ainda dos primórdios da modernidade, o fichário tenta tudo registrar, tudo dizer, tudo guardar. Ter a informação sobre o que seria o corpo, o nome, o espaço ou o evento suspeito se tornava fundamental para reinstaurar a sensação de segurança perdida, diante de uma realidade feita de estranhos e estrangeiros como era a cidade, notadamente, um grande porto internacional como a cidade do Recife. Por isso, até mesmo todo o casario, todos os edifícios, cujas fachadas miravam o porto, mereceram o fichamento (Prontuário: Casas que avistam). Contraditório e antinômico, esse arquivo devia iluminar vidas, trajetórias, identidades, lançar luzes sobre comportamentos, ideias, pensamentos, gestos, atitudes, eventos; devia elucidar tramas, conúbios, tratos, acordos, encontros e desencontros; devia aclarar conspirações, sabotagens, crimes, contravenções, tráfegos e tráficos; devia se inteirar de tentativas de subversão, desordem, revolta, revolução; devia focalizar momentos e tormentos, com a condição, no entanto, de que tudo se fizesse no anonimato, na escuridão; que todas as ações de seus agentes se passassem no segredo, nas sombras; que tudo se registrasse silenciosamente; que tudo se dissesse discretamente; que tudo e todos se seguissem sem se dar notar, embora sobre tudo e sobre todos anotando. Daí porque esse fichário, essa superfície de registro e iluminação, deu origem à obscuridade, pelo menos da maioria de seus integrantes. Os tempos sombrios de ditadura e de guerra, dos quais a maioria são testemunhos, projetou suas sombras sobre essas pessoas, sobre esses artistas e sobre o que fizeram e pensaram. Nesses dias em que muitos saem às ruas do país para pedir a volta aos tempos de sombra das ditaduras, trazer à luz esses registros é fundamental, para que se saiba o que significa viver sob um regime ditatorial e de exceção.

Podemos, através desse fichário, nos inteirar de quais corpos se tinha medo, quais os corpos eram motivos de repulsa ou de recusa nessa sociedade. Toda sociedade é presidida por um dado regime de corpos, cada época é dominada por um dado modelo hegemônico de corporeidade, o que nunca impede a existência de corpos que transgridam ou que fujam desse padrão. Através desse material podemos traçar uma cartografia dos corpos desviantes, na sociedade brasileira, entre os anos trinta e cinquenta do século XX. O corpo do artista já parece ser em si mesmo suspeito, por ser um corpo fora do normal, por ter habilidades que não são comuns a um corpo que, naquele momento, no Brasil, era pensado como um corpo masculino, rígido, militarizado, corpo higienizado e moralizado, corpo conformado pelo trabalho e pela disciplina: corpos que se contorcem (Natalio Sharf. Olinda Pereira Guimarães), que quase voam ou se despedaçam (Valentina Matos Souza, conhecida como Cidália Mattos. Moralino Antonio Alves, o ‘Cabo Verde’. Ricardo Rodolfo Montaño. Pablo Lautaro), corpos que flutuam, que dançam, que rebolam, corpos sensuais (Reina Aurora Lincheta de Hidalgo. Martin Navarro Amargos. Nicholas Klevchikoff), corpos que se travestem (Walter Bank), que se divertem, que se embriagam (Nilza Cabral de Góis. Maria Montesinos), corpos alijados do trabalho regular (Miguel Nemolowsky. Júlia Rodrigues Nuñe ou Muñe), corpos mais noturnos que diurnos (Magdalena Giamarelli de Mejia ou Lydia Campos), corpos capazes de performances e disfarces (Reinaldo Rodrigues ou Charles Morris. Alda Bogoslowa).

Muitos desses corpos eram corpos femininos, que não seguiam rigorosamente as normas e os códigos definidos para seu gênero, nesse momento da história brasileira, pois não eram corpos de mulheres domésticas, devotadas ao lar, ao papel de mães e esposas (Maria Wiesner. Trupe Internacional das Mulheres Lutadoras). Ao medo do corpo feminino, tão presente num imaginário masculino que define a mulher como um ser perigoso, estranho e traiçoeiro, vem se somar, ao mesmo tempo, o desejo, o fascínio e o medo, o preconceito em relação aos corpos das mulheres públicas, que se dedicavam à atividades fora do lar, que trabalhavam em espaços noturnos e de frequência predominantemente masculinos (Alice Stauber ou Miss Baby). As artimanhas de que lançam mão essas mulheres para sobreviver e viver nesse mundo de homens geram insegurança e suspeita sobre cada uma de suas ações. Artistas performáticas, teme-se que fora do palco elas também continuem atuando, participando de tramas políticas e diplomáticas (Arlete Flôres. Genette Alves Georges).

 

3. Uma cartografia das delícias e dos prazeres: as artes do nomadismo

Cartografias sobrepostas do Recife do Obscuro Fichário: nomadismos, delícias e artes. Acesse a cartografia.

Cartografias sobrepostas do Recife do Obscuro Fichário: nomadismos, delícias e artes. Acesse a cartografia.

 

Esses corpos femininos e de artistas, no entanto, não participam apenas dessa geografia paranoide da vigilância e da suspeita; eles são parte constitutiva de uma outra geografia da cidade, de uma cartografia das delícias ou dos prazeres (Mapa geografia das delícias). O Recife da vigilância e da suspeita construída pelas ações e relatos dos agentes da DOPS, dá lugar a um Recife da vida noturna, da boemia, das diversões, das festas, das atividades lúdicas, dos encontros e desencontros sexuais e amorosos (ver Festa da Mocidade – Delícias). Essa geografia surge dispersa, fragmentada, feita de pequenos blocos ou platôs, como diriam Deleuze e Guattari[6], no interior do relato paranoide. Coexistentes e concorrentes, essas duas geografias da cidade aparecem tensionadas no interior dessa documentação, impedindo que se tenha uma visão harmônica e identitária da cidade. A cidade surge em sua polifonia e em suas rugosidades, surge como uma geografia das diferenças.

Presidido pela lógica da identidade e da identificação, esse arquivo votado aos artistas, não cessa de esbarrar com, de ter de dar conta de, de contar o diferente. Os corpos, espaços, práticas e eventos diferentes, divergentes, contestatários, transgressores, não cessam de aparecer sob o texto e a imagem que buscam capturá-los em sua identidade, em sua identificação, na mesmice das categorias que compõem a grade de classificação usada pela instituição (Nilo Scansetti). Presidido pela lógica do sedentariedade e da sedentarização, esse arquivo não cessa de se deparar com o nomadismo, com corpos que nomadizam nos espaços e nos códigos, permitindo desenhar uma verdadeira geografia do trânsito ou da deambulação, possibilitando fazer uma cartografia da cidade constituída pelas trajetórias e fluxos daqueles que nela chegam ou por ela se deslocam e que, por seu turno, nela provocam deslocamentos de códigos e sentidos (Mapa do nomadismo). Empresa destinada a um possível aprisionamento desses corpos, os agentes desse arquivo não cessam de se defrontar com práticas de liberdade e de libertinagem (Maria Mathilde Giroux ou Lydia Yvonne). Agentes em busca de sedentarizar, mas que, contraditoriamente, para isso se fazem nômades, nomadizam, perambulam, se deslocam por distintos espaços da cidade (Carmen Silvia Brown Munefelt ou Vênus de Bronze. Janina Maryla Bloch). Na caçada a dados corpos, à identidade de dados corpos, os agentes da DOPS terminam por perder seus nomes, também mudam de identidade, também se escondem sob codinomes e apelidos, na caça às pessoas esses se despersonalizam, perfomatizam personagens (como o policial que se vangloria de ter encarnado um personagem, sentado na mesa e bebido com Boris Popoff, a quem vinha vigiando sem que esse percebesse), na espreita aos artistas também fazem as suas artes. Talvez por isso, o mentor desse arquivo, aquele que o dirigiu e o organizou por anos a fio, que mereceu homenagem e condecoração pelos serviços prestados à segurança e a repressão, tenha, ele mesmo, se fichado, tenha constituído um prontuário para si mesmo, para ganhar identidade, para ter existência, para sua presença permanecer mesmo depois de lá ter se ausentado (Júlio de Vasconcelos Barros).

Os agentes que produziram esse arquivo não cessaram de se encontrar com corpos que mudam constantemente de nome (Manoel Tibúrcio Correia de Araújo ou Apolo Correia. Maurício Tajman ou Maurice Tamara), de identidade, de documentação, corpos que se deslocam por distintos espaços, que não conhecem fronteiras, nacionais ou internacionais (Julien Mandel), que mudam de nacionalidade ou de naturalidade (Rita Helene Gouilloux. Marina Vargas Aguirre), corpos que alteram sua origem étnica (Beatriz Janovite ou Emília Tayirivitch), até mesmo corpos que mudam de sexo ou de identidade de gênero (Norberto Americo Aymonino ou Aymond), corpos que mudam constantemente seu lugar de residência, sua profissão, seu trabalho, sua especialidade, suas atividades, seu estado civil, suas parcerias, seus amores, suas amizades, até mesmo mudam de parentes e de ascendentes (Manoel do Santos Serna. Marcos Chertkow). Vivendo nesse mundo de troca de lugares, de identidades, de papéis, de personalidades, de personagens, como é o mundo artístico, este mundo do disfarce e da mascarada, muitos agentes parecem também ter se extraviado de seus papéis, a ponto de o governo de Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, em 1948, no período da redemocratização, ter de criar uma Delegacia Auxiliar, para tentar corrigir, punir e até demitir os agentes que haviam se extraviado do mundo da lei e da ordem, que queriam também dar uma de artista.

Esse obscuro fichário dos artistas mundanos nos permite também traçar o que seria uma cartografia das artes na cidade (Mapa da geografia das artes), ter acesso a fragmentos significativos das paisagens sonoras, visuais, táteis, gustativas e olfativas da cidade do Recife entre os anos trinta e cinquenta do século passado. Nessa geografia, se destacam os espaços destinados à ocorrência de espetáculos e diversões: teatros (Teatro de Emergência Almare), cassinos (Casino Chantecler), cabarés (Imperial Casino – Delícias), circos (Nerino), cinemas (Cine Teatro Moderno), casas noturnas, casas de espetáculo (Casino Império), casas de jogos (Taco de Ouro), cafés, restaurantes (Bar Gambrinus), hotéis (Hotel Central), bares (Bar Royal) que ofereciam espetáculos artísticos ou mesmo os diversos espaços da cidade que, em dada época do ano, se transformavam em cenários para festas, diversões e apresentações de espetáculos artísticos. Mas nela também podemos inscrever os espaços institucionais, empresariais ou organizativos destinados a fomentar a arte ou dedicado a diversão, que também padecem da vigilância e da censura do Estado (companhias cinematográficas (Meridional e Columbia Pictures, cineclubes (Cine Siri), livrarias, lojas de discos, jornais, estações de rádio (Radio Club de Pernambuco e Rádio Jornal do Commercio), salas de cinema (Cine São Luiz), companhias de teatro, organizações e clubes carnavalescos, associações de artistas (Sociedade de Arte Moderna), movimentos culturais e no campo da educação e da cultura ditas populares). Em meio aos relatos pormenorizados dos prontuários, notadamente daqueles que trazem o relato das campanas feitas pelos agentes (campana é a atividade em que um agente da DOPS seguia, às vezes por dias seguidos, uma mesma pessoa e anotava tudo o que ela fazia ou dizia) (Geraldine Virgínia Pike), surgem o que são indicações de cenas e configurações urbanas da cidade, de sonoridades, referências ao que e onde se comia e bebia na cidade (há os interessantes casos de um cardápio apreendido no Bar e Restaurante Familiar Tabu, por suspeita de trazer no nome de seus pratos um código secreto ou do agente que ao achar caro e ruim um prato que lhe serviram num restaurante autuou imediatamente o dito prato) (Restaurantes), referências aos cheiros que se sentiam em dados espaços da cidade, cheiros físicos e/ou morais (caso), às sensações e sentimentos que dados corpos e espaços provocavam nos agentes da ordem ou naqueles que eles vigiavam (Tamoio Filmes. Teatro Pernambucano de Estudantes).

 

4. Cenários de anormalidade

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Anúncio do Ballet Tania Tanagra no Casino Império. Jornal Pequeno de 21 de Dezembro de 1945. BNDigital – Fundação Biblioteca Nacional.

 

Arquivo presidido pela racionalidade da norma e da normalidade, esse arquivo só para artistas, não cessa de dar testemunho da anormalidade. Nele aparecem corpos e espaços que desobedecem às normas, que não correspondem ao que socialmente e juridicamente é definido como sendo o normal, naqueles momentos históricos. Figuras patológicas ou teratológicas, esses corpos e os espaços e cenas em que figuram, são vistos como ameaçadores por não estar conforme a lógica de classificação, o plano social de significação e nomeação de pessoas e coisas. Figuras derrisórias, muitas vezes voltadas para a produção do riso, da gargalhada, (palhaços e comediantes são sempre temidos por quem representa a ordem), elas não deixam de ser figuras incômodas, não só porque o riso incomoda toda autoridade que sempre se julga séria e que busca ser vista e dita com seriedade, ser tratada seriamente (como no episódio em que a senhorita Anita Palmeiro é intimada a comparecer a delegacia por gargalhar no mesmo espaço em que se encontrava o Interventor do Estado Agamenon Magalhães) (Grande Otelo. Mesquitinha. Biriba.), mas porque não se conformam aos códigos que definem o que são corpos aceitáveis e desprovidos do perigo do contágio, do contato, do conflito. O mundo artístico estava povoado de corpos e seres estranhos: corpos de raças e grupos étnicos considerados inferiores, minoritários ou degenerativos (Eber Alfred Goldberg. Ernest Alexander Hirsch. Heinz Dietter Grund. Kurt Heinrick Maschke), de personalidades bizarras e estranhas realizando atividades ligadas aos mundos obscuros e suspeitos da magia (Selma Josefina da Costa Goebel. Juan José Pablo Jesonoun, conhecido como Chang.), do curandeirismo (Krikor Tahra Kalafayan ou Tahra Bay), das artes divinatórias (Neide Alvares de Sousa ou Neide, a ‘mulher infernal’), da cartomancia, da quiromancia (Prontuário: Ocultismo e quiromancia), das religiões e cultos populares e não obedientes a ortodoxia da Igreja Católica (Mamah Felice Abou), que se reaproxima do regime, no pós-trinta, lhe dando apoio ideológico e participando da formulação dessa política e polícia dos costumes, dos corpos e dos espaços. Em tempos da prevalência do pensamento eugenista, em tempos dominados pelo mito da raça pura, da raça ariana, os corpos de negros, indígenas, judeus, ciganos parecem de saída perigosos e suspeitos (Uyara Marques ou Santinha Marques ou Uyara de Goyás). Corpos que não obedecem aos padrões de normalidade: anões, mulheres barbadas, contorcionistas, corpos andróginos, corpos que se destacam pela estatura fora do normal, pela excessiva magreza ou obesidade chamam a atenção dos agentes da norma (Sixto Argentino Gallo. Manlio Salce).

Sendo uma cidade cosmopolita, um grande porto, Recife era constantemente visitada por estranhos e estrangeiros. Num momento de conflito internacional, num momento de guerra mundial ou de guerra fria, esses corpos estranhos e estrangeiros e os espaços por onde circulavam como hotéis, pensões, hospedarias, restaurantes, cafés, bares, casas noturnas, casas de jogos, bordeis, tornam-se parte dessa geografia paranoica que, ao mesmo tempo, se confunde, se bifurca e se diverte nas geografias dos prazeres, das delícias e na geografia das artes e das diversões. Empresa da homogeneização, da construção da unidade nacional e da unidade política e ideológica, esse arquivo da DOPS, não cessa de se deparar com a diversidade, com a multiplicidade, com a dissenção (temem-se os russos, os alemães, os italianos, os japoneses, as polacas, mas não se deixa de temer pelos americanos, os ingleses, os franceses, pelo o que possa acontecer no país aos aliados) (Timóteo Scripnic. Gregório Vassilieff. Miguel Klutchko. Yan Schuen Pan. Vitória Coppola ou Artemísia Miranda. Trio Astro). No interior do corpo e do rosto homogêneo e unitário que se quer construir para a cidade, outros corpos e outros rostos vêm constituir corporeidades e rostidades outras para essa cidade.
 5. Mapas da suspeição, da resistência, da transgressão

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Pavilhão “Anti-comunismo” da Exposição Nacional de Pernambuco, instalada no Parque 13 de Maio em 1940. Fotografia do acervo do APEJE-PE.

 

Por fim, esse arquivo paranoide, essa geografia da suspeição que ele desenha, tem como grande motivação o fato de que não existem corpos e espaços humanos que não sejam, como nos diz Foucault[7], parte de um rede de poderes e de saberes. Esses corpos tramam a cidade em suas relações que são atravessadas sempre pelo poder. A cidade é uma malha de corpos e objetos articulados por relações de negociação, consenso, assentimento e conflito. Como nos diz Giorgio Agamben[8], o que diferencia a vida humana de qualquer outra vida, o que faz os humanos ter uma vida para além da mera vida biológica, é o fato de que a vida humana é política. Um corpo destituído de cidadania, um corpo que era expulso da cidade, desde os gregos, era visto como um corpo que perdia essa condição e passava a ser apenas carne nua, corpo que perde sua sacralidade e se torna matável. A criação da DOPS, em 1935, se deu preferencialmente por motivos políticos, como uma resposta à movimentação dos comunistas que viria resultar na chamada Intentona Comunista. Ela foi criada para defender o Estado, a ordem, a nação da ameaça comunista, da ameaça da subversão e da revolução, embora na paranoia geral em que nasce, termine por se imiscuir em muitas outras atividades sociais.

Esse arquivo composto pelo fichário e prontuários voltados para o registro de artistas, que disponibilizamos nesse site, também permite desenhar uma quinta cartografia, uma geografia política da cidade do Recife (Mapa da geografia política). Através dos relatos feitos pelos agentes, das imagens por eles feitas ou recolhidas, dos recortes de jornais e revistas apensadas aos prontuários (Mário Melo. Cícero Dias. José Lins do Rêgo), dos diversos documentos políticos apreendidos ou coletados pelos agentes (discursos, panfletos, manifestos, declarações públicas, programas partidários, plataformas políticas e sindicais, atas de reuniões, etc) (Alberto Cavalcanti, Modesto Bittencourt), pode-se ir desenhando as diversas linhas que constituem o intricado e emaranhado mapa político de diversos períodos na cidade, no Estado, no país em suas conexões internas e internacionais. Tendo sempre o cuidado de pensar que esse, como todo arquivo, está atravessado também pela censura, está marcado pelo ponto de vista de quem o elaborou (embora a barafunda de agentes e agências que o produziu e os distintos períodos de que é testemunho, o censura em múltiplas linhas e impede que se dê a ele qualquer unidade, seja política, ideológica ou ética). Em busca da coerência, esse arquivo não cessa de produzir o disparate, e como poderão ver, eles são muitos.

Nessa cartografia aparece a cidade ameaçadora, rebelde, vermelha, de conspiratas e conspirações, a cidade de movimentos e movimentações, a cidade de homens e mulheres que lutam pela vida e por direitos, que se revoltam contra as injustiças e explorações de que são vítimas, corpos que buscam ocupar lugares de poder, liderança e autoridade. A cidade das reuniões e meetings políticos, a cidade dos comícios, das passeatas, dos protestos, a cidade dos sindicatos, dos partidos, das organizações populares e intelectuais, das instituições de articulação e solidariedade das distintas parcelas das elites. Uma cartografia da cidade feita dos lugares de concentrações populares para fins políticos, de espaços de manifestação e atuação político-eleitoral ou partidária, mas também de lugares onde clandestinamente ou veladamente homens e mulheres de diversas condições sociais e de diversos locais da cidade se reuniam para o debate de ideias políticas ou para o exercício da preparação de atividades e atitudes políticas (Cine Clube Charles Chaplin. Tamoio Filmes). Uma cidade feita de locais de ajuntamentos, de greves, de conflitos e confrontos com as forças policiais e da ordem, de enfrentamentos entre partidários de diversas correntes políticas, quando as pedras da cidade eram riscadas e marcadas, quando não arrancadas, pela refrega das lutas políticas e, algumas vezes, tingidas pelo sangue dos que se feriam ou caíam mortos nas lutas (Demócrito de Sousa Filho). Uma cartografia desenhada pelas trajetórias, deambulações, deslocamentos, ajuntamentos, dispersões, alianças e conflitos, fugas e maquinações, pelas peripécias dos corpos que se colocavam como sujeitos de práticas e pensamentos identificados como políticos (Cine Siri). Uma cidade feita de aparecimentos, de manifestações e de clandestinidades de corpos que ganhavam humanidade ao se assumirem como seres políticos. Em alguns casos, esse arquivo registra o aprisionamento de corpos que perderam todos os seus direitos jurídicos e políticos; que ao entrarem na clandestinidade dos porões dos regimes, tornaram-se carne nua, carne matável, corpos que ainda hoje clamam por justiça, alguns ainda clamam por uma sepultura, clamam por sair da condição de desaparecidos, clamam pelo estranho e doloroso direito de ter uma morte.
6. Convite a borboletear

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Imagem da Revista do Imperial Casino, Março de 1937, Typographia São Luiz – Recife/PE, p.35. Acervo de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco (BPE).

 

Enfim, este site que se coloca à disposição de todos, como um dos resultados do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, quer ser um convite para que cada um possa, a partir da documentação, dos casos disponibilizados, imaginar e produzir outras cartografias possíveis para a cidade do Recife. Nem a pesquisa, nem este site, nem este texto têm a pretensão de apresentar uma imagem unificada e homogeneizada do que foi o Recife, do que foi a vida dos artistas, do que foi a repressão, do que foram as ditaduras e regimes democráticos nesse período. Eles são apenas sugestões, ponto de partida para que cada leitor possa traçar seus próprios roteiros pela cidade, possa escolher os corpos e espaços que farão parte de seus relatos. Esse site tem a pretensão de se constituir em um atlas, tal como o pensaram Aby Warburg, Walter Benjamin ou Georges Didi-Huberman,[9] ou seja, como uma mesa ou uma prancha sobre as quais diferentes elementos estão dispostos, como um campo operatório do díspar e do móvel. Isto significa a renúncia a tentar operar com a mesma racionalidade que presidiu a montagem do arquivo da DOPS ou mesmo da parte dele destinado aos artistas, ou seja, a renúncia a procurar qualquer unidade de sentido ou a buscar qualquer unidade visual ou a imobilização temporal desses elementos, mas ressaltar a heterogeneidade de tempos e espaços que constituem esse arquivo, tempos e espaços heterogêneos que, no entanto, não param de se encontrar, de se confrontar, de se cruzar, de se amalgamar. Diversas cartografias da cidade, compostas por diversas linhas e planos, por distintos elementos e cenários, onde o quadro final não se encontra consumado, mas apenas constituem um dispositivo aberto, onde toda ordenação poderá ser desordenada, onde o trabalho de significação deve recomeçar. “Como o amor físico, em que o desejo se renova, se relança constantemente, é necessário redispor as figuras do atlas constantemente. Nada nele está fixado de uma vez para sempre, tudo nele é a refazer – por prazer renovado, mais do que por castigo sisífico – a redescobrir e a reinventar”[10]. Este site quer ser, portanto, apenas uma tela aberta a redescobertas e a reinvenções de sentido para esses corpos e espaços artistas e artísticos que participaram das tramas e que tramaram a cidade do Recife durante trinta anos do século XX, fazendo dessa cidade um espaço permanentemente em montagem e desmontagem e, por isso mesmo, um espaço que infundiu tanto medo e insegurança naqueles defensores da ordem e dos privilégios. Cidade montra e cidade monstra que assombrou o Estado e seus agentes, que lhes tirou o sono, que lhes provocou a elaboração paranoide de uma geografia do medo, da perseguição, da delação, do aprisionamento, da tortura, do terror e da morte; que jogou sombras sobre e obscureceu a vida de simples artistas mundanos, artistas do mundo, artistas na e da vida, de pessoas que apenas desempenhavam a difícil arte de viver como humanos, as delicadas artes da existência e delas retiraram não só seu sustento, mas muito prazer e alegria. Corpos que, como lindas falenas noturnas, borboletearam pela cidade, sem paradeiro certo, distribuindo a beleza com seus corpos e com o adejar de suas possíveis asas, as asas de seus dotes artísticos, fazendo voar a imaginação de quantos os viram, mesmo a imaginação paranoide de todos os vigilantes de plantão, deixando no rastro de suas passagens e de suas apresentações, de suas presenças e performances, o aparecimento de todos os fantasmas e fantasias do desejo. As brilhantes cores e formas de seus corpos pulsantes fazendo voar pelos ares o desejo de morte prevalecente nos tempos de ditadura e guerra. Esses corpos mariposas convocam todos a produzir sobre eles um saber tremulante, um saber sem o repouso das certezas, um saber lindo e frágil como uma asa de borboleta.

 

[1] BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[2] SIMMEL, Georg. O conflito da cultura moderna e outros escritos. São Paulo: Senac, 2013.

[3] SENNET, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

[4] CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela cidade. In: A Invenção do Cotidiano 1: as artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 169-192.

[5] CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

[6] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.

[7] FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: Ditos e Escritos, vol. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 411-422.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte: UFMG 2010.

[9] WARBURG, Aby. L’Atlas Mnémosyne. Paris: L’Ecarquille, 2012; BENJAMIN, Walter. Eduardo Fuchs, colecionador e historiador. In: O anjo da história. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 107-144; DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou a gaia ciência inquieta: o olho da história. Lisboa: KKYM + EAUM, 2013.

[10] DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. Cit. p. 54.

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