"O Belo Golpe" ou por que os farsantes temem a farsa e os farsistas

A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa (MARX, Karl. Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte).

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Abrem-se as cortinas do espetáculo. Primeira cena. Estamos no dia 30 de setembro de 1937. São pontualmente dezenove horas. Um aparelho de rádio inicia a transmissão do programa Hora do Brasil, programa criado pelo jornalista Armando Campos, amigo pessoal do presidente Getúlio Vargas, no ano de 1935. Ao invés de se ouvir a tradicional locução de Luís Jatobá, ouve-se a voz grave do general Góis Monteiro, Chefe do Estado-Maior do Exército Brasileiro, que em tons dramáticos, quase novelesco, anuncia a descoberta de um plano de assalto ao poder de Estado, de derrubada do presidente. Segundo o general, o Exército havia apreendido um documento, um plano detalhado arquitetado pelo Partido Comunista Brasileiro e por partidos comunistas internacionais, que previa uma insurreição armada, acompanhada da invasão de forças estrangeiras, com prévia agitação de operários e estudantes, a libertação de presos políticos, o incêndio de casas e prédios públicos, manifestações populares que desaguassem em depredações e saques, além da eliminação de autoridades civis e militares que se opusessem ao golpe. A medida que seria uma réplica da chamada Intentona Comunista de 1935, o Plano Cohen, como foi nomeado, numa pretensa referência ao líder comunista húngaro Bela Cohen, que governara aquele país entre março e julho de 1919, numa tentativa de revolução logo derrotada, não teve sua autenticidade questionada[1].

Apesar do sombrio da cena, as luzes se acendem, é o intervalo. Segunda cena. Dia 01 de outubro de 1937. Diante da “ameaça vermelha”, o presidente Getúlio Vargas solicita ao Congresso Nacional a decretação do Estado de Guerra e tem o seu assentimento, na mesma data. O poder Legislativo abre mão, assim, da maioria de suas prerrogativas, assim como suspende a vigência da Constituição promulgada em 1934, considerando suspensas, também, a vigência dos direitos e garantias individuais, conferindo ao Executivo poderes excepcionais: o Legislativo contribui, assim, para a instauração de um estado de exceção no país.  Com suas mãos livres das amarras da legislação democrática, Vargas inicia dura perseguição aos ditos comunistas, mas também a todos os seus opositores políticos, como o governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, que se constituía num obstáculo  ao seu projeto autoritário. Tendo perdido o controle sobre a Brigada Militar, que tinha sido subordinada ao Exército, cercado no Palácio Piratini pelas tropas do general Góis Monteiro, Flores da Cunha negocia a rendição e se exila no Uruguai. Agora faz-se uma espessa escuridão no palco, enquanto se transita para a terceira cena[2].

Fim de tarde, início da noite de 10 de novembro de 1937. Ouve-se nos rádios de todo Brasil a voz do presidente Getúlio Vargas, anunciando o início de novos tempos, o surgimento de um Estado Novo. No pronunciamento que chamou, de forma original, de Manifesto à nação, prometia o “reajustamento do organismo político do país às suas necessidades econômicas”. Anunciava, ainda, de forma generosa, a outorga ao país de uma nova Constituição, totalmente redigida pelo jurista Francisco Campos, que, na verdade, copia em linhas gerais a Constituição polonesa, uma Constituição também outorgada e nascida de um golpe militar  chefiado pelo marechal Jozsef Pilsudski, em 1921. Horas antes, obedecendo ordens do presidente, tropas do Exército haviam cercado o Congresso Nacional, que tem as suas atividades encerradas. Ao abrir mão de suas próprias prerrogativas, ao contribuir diretamente para a instauração de um estado de exceção no país, ao contribuir, em nome da prevenção de um golpe, para que um golpe se efetivasse, ao não defender o estado democrático de direito que era o fundamento jurídico e político de sua existência e funcionamento, o Congresso Nacional encaminhou, ele próprio, o seu fechamento[3]. Faz-se total escuridão na casa de espetáculos. No entanto, essas primeiras cenas eram apenas o preâmbulo de um drama que se estenderia por oito longos anos. Mas como era de costume na Idade Média, entre a primeira parte da encenação de um espetáculo teatral e a sua segunda parte, notadamente se fossem espetáculos muito dramáticos, muito trágicos, como os chamados “mistérios” ou “milagres”, que abordavam temáticas religiosas, que encenavam o martírio de Cristo, dos santos ou dos homens da Igreja, ou que tematizavam as obras miraculosas conseguidas através da fé, se encenava uma pequena peça cômica, de um só ato, composta de uma breve intriga, apresentando poucos personagens, caracterizada por uma ação vivaz, irreverente e burlesca, que passou a se chamar de farsa.

A palavra farsa vem do latim farcere que remetia a prática de engordar o animal para o abate, por extensão passou a ser usada para se referir a ação de rechear, de encher as aves ou outros animais para serem servidos como alimento[4]. Como a peça cômica era apresentada no intervalo, era colocada no meio das duas partes que compunham os gêneros dramáticos, foi associada à ideia de recheio, de algo criado para rechear os espetáculos a ser apresentados, tornando-os mais “gordos”, daí passarem a ser chamados de farsas. Elas eram uma espécie de corpo estranho que, no entanto, servia de tempero, apimentava e completava o espetáculo sério e insípido destinado a moralizar e educar nos padrões da religião católica. Ela remetia a algo que estava escondido, que estava disfarçado, um conteúdo que não se mostrava imediatamente. A farsa servia como uma espécie de suspiro, de alívio, relaxando a tensão trazida pelo drama principal. Normalmente era uma comédia de costumes, sem pretensões moralizantes ou pedagógicas, embora o riso, o sarcasmo e o ridículo que envolviam as situações cotidianas apresentadas não deixassem de questionar ou pôr em suspeita valores, costumes e dadas personagens. Ela se apoiava em situações cotidianas, normalmente envolvendo personagens do povo ou da burguesia nascente que serviam de riso para a aristocracia que as assistia. Elas enfatizavam mais a ação que a palavra, sendo baseadas em textos da tradição oral, contendo poucos diálogos, apelando para a ênfase na gesticulação, quase sempre exagerada. Seus personagens eram muito sumários psicologicamente, eram tipos, espécie de caricaturas, de máscaras que, ao mesmo tempo, eram desmascaradas ao longo do espetáculo. Herdeiros da tradição da bufonaria, os personagens das farsas deixavam aparente que eram representações, não havia qualquer pretensão realista em suas performances. Os enredos das farsas normalmente se constituíam de histórias paralelas que em algum momento se entrecruzavam. Ela se baseava num verdadeiro jogo de enganos, em que todos tentavam e pensavam ser expertos e, muitas vezes, terminavam por saírem logrados. O cerne do gênero farsesco é a trapaça, é a consecução pelo personagem principal da trama, o burlador ou enganador – que pode ter consciência disso, fazendo racionalmente seu jogo ou ser alguém tão ingênuo que consegue não só enganar aos demais, mas não perceber que o faz, enganando-se a si próprio -, do chamado belo golpe: a ação decisiva, o gesto, a fala que o leva à vitória, que o faz conseguir através da astúcia, ou não, derrotar seus oponentes na ação. Portanto, a farsa costumava apresentar situações de conflito que eram resolvidos por um golpe de sorte ou de esperteza. Muitas  vezes as farsas apelavam para o duplo sentido nas falas e nos gestos, deixando subtendido o que quer dizer ou mostrar, para os gestos obscenos e escatológicos, dando destaque ao baixo corporal[5]. Como um gênero que nasceu dos espetáculos exibidos em feiras e praças de mercado, faz parte do que Mikhail Bakthin[6] chamou de cultura carnavalesca, que apelando para textos, gestos e personagens marcados pela malícia, pelo deboche, criticavam a nascente vida urbana, seus tipos populares, apresentados como rústicos, grosseiros e ignorantes, mas também a nascente burguesia e o próprio clero que aparecem como seres desonestos, hipócritas, cínicos, entregues ao vício. Esses espetáculos fazem seus personagens serem presos nas próprias armadilhas que preparam para os demais, numa sucessão de equívocos e de auto-logros,  servem para denunciar a incoerência humana, a distância entre discursos e práticas, apresentar os conflitos sociais, muitas vezes encenando a inversão ou deslocamento dos lugares de poder e autoridade, realizando imaginariamente os desejos de liberdade e de mudança social de quem as assistia.

Mas feito esse intervalo para apresentar a estrutura de enredo do que se vai agora assistir, voltemos ao nosso espetáculo, que foi suspenso na hora em que iríamos começar a ver como entremés, o equivalente a farsa no teatro espanhol do chamado século de ouro (XVI-XVIII), uma das mais espetaculares e bem urdidas farsas da história do Brasil, já por si tão rica na produção de farsas e na existência de farsantes. Acendem-se as luzes, embora o cenário apareça enevoado. Estamos no ano de 1945, o mesmo general Góes Monteiro, ainda Chefe do Estado-Maior do Exército, conspira agora para a derrubada de Getúlio Vargas e para seu impedimento de concorrer às eleições marcadas para o dia 02 de dezembro daquele ano. O ditador tornara-se popular ao sancionar a legislação trabalhista e desagradava interesses internacionais, notadamente americanos, com sua política econômica nacionalista (qualquer semelhança com personagens e  fatos reais contemporâneos é mera coincidência). Como parte da conspirata para desestabilizar e desmoralizar o presidente, o general vem a público revelar que o Plano Cohen, que fora o pretexto para a instauração do Estado Novo, não passava de uma fraude, era um documento escrito com a anuência do próprio Vargas que visava, assim, usar o espantalho comunista para se manter no poder indefinidamente. Ou seja, tudo o que ocorrera entre setembro e outubro de 1937 não passara de uma farsa. E como no gênero teatral, personagens menores e obscuros começam a ser empurrados para o proscênio, começam a ser atirados da escuridão para aparecerem aparentemente atônitos e figurando inocência em plena luz da cena e da história. Inicia-se um verdadeiro jogo de empurra, um jogo de espertezas, onde todos juram inocência e o povo brasileiro se descobre como o grande logrado: o general Góes Monteiro se exime de qualquer responsabilidade, diz ter acreditado na veracidade do documento quando este chegou até as suas mãos, só mais tarde vindo a descobrir que se tratava de uma fraude, não a denunciando por receio de vir a desmoralizar as Forças Armadas, únicas instituições capazes de conter o “perigo vermelho”. Atribui a autoria da fraude ao capitão Olímpio Mourão Filho, chefe à época, do Serviço Secreto da Ação Integralista Brasileira, partido de extrema-direita, que nesse momento ainda apoiava Vargas, que inicia assim, com  brilhantismo, a sua carreira de golpista, que terá como capítulo máximo e glorioso, quando já se tornara general, a chefia das tropas que se deslocarão de Juiz de Fora, em Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro, dando início ao golpe militar de 1964. A história repetindo-se como tragédia, depois da farsa. Ele, por seu turno, admitiu ter escrito o documento mas a pedido do chefe maior da AIB, o escritor e jornalista Plínio Salgado, afirmando, no entanto, tratar-se de uma mera simulação de um plano de ataque comunista para fins de estudo e uso interno das fileiras integralistas. Uma cópia do plano, segundo Mourão, chegou às mãos de Góes Monteiro levada pelo general Álvaro Mariante. Monteiro teria se apropriado indevidamente do documento e o tornado público, como parte da trama que buscava instaurar uma ditadura no país. Mourão alega então que a disciplina militar a que estava sujeito o teria impedido de divulgar a farsa. Plínio Salgado, um dos muitos civis artífices da preparação do “belo golpe” de 1937, que chegou a retirar sua candidatura a presidente da república nas eleições que iriam ocorrer em 1938, para apoiar a instauração do estado de exceção, usou dos mesmos argumentos de Góes Monteiro, para justificar seu silêncio diante da farsa jurídico-política-militar: não poderia desmoralizar as Forças Armadas, únicas instituições capazes de evitar a “ameaça vermelha”[7]. Esses argumentos e enunciados vão fazer parte de um verdadeiro arquivo de discursos golpistas que recorrentemente e anacronicamente sobrevivem e retornam na sociedade brasileira. Com esse jogo de empurra, com essa cena de “pega que o filho é teu” (comovente como muitas da nossa história recente) encerra-se a farsa, o que se vê no palco não é nenhuma moralidade, mas a exibição dos vícios e imoralidades dos personagens. A plateia, sem graça, descobre que foi ela a grande enganada. O espetáculo de cinismo e hipocrisia que acabaram de assistir ao invés de moralizar, desmoraliza. Nessa farsa o povo não ri do poder ou dos poderosos, são eles que riem e se divertem com a cara de patuleia do povo. Ao invés de serem debochados, eles debocham de quem os assiste.

Findo o intervalo farsesco (será mesmo?), retoma-se o espetáculo principal, o espetáculo sério e pedagógico. A segunda parte da apresentação se inicia com uma cena que se passa, numa espécie de flashback, três anos antes do início do Estado Novo. Na parede de uma repartição pública, identificada por uma placa como sendo a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, criada em 1931, para substituir a antiga Repartição Central de Polícia,  um calendário marca o dia 14 de abril de 1934. Um personagem identificado apenas como o Investigador n. 65, sentado em uma escrivaninha, datilografa um documento nomeado de “Parte”, destinado ao Ilmo. Sr. Chefe da Secção de Ordem Política e Segurança, que lhe havia ordenado obter maiores informações sobre a atriz Alda Bogoslowa. À medida que o datilografa, ele o verbaliza em voz alta, diz o documento:

Com o fim de cumprir as ordens dadas por V. Sa. no sentido de conseguir algumas informações à respeito da atriz “Alda Bogoslowa” cumpri-me informar que colhi as seguintes no “Palace Hotel” onde a mesma esteve hospedada.

Referida artista se diz “Princesa Russa”, foi contratada no ano passado pelo proprietário do “Taco de Ouro” afim de ali trabalhar como bailarina. Referida artista quando aqui chegou foi-se hospedar no “Hotel Central”, tendo em 11/11/ do mesmo ano, passado a morar no “Palace Hotel” onde esteve durante quatro dias, isto é até o dia 14 do mesmo mês e ano, dia esse em que se retirou acompanhada de um russo que vendia casas a prestações por conta da Sul América, com destino a Maceió e Natal onde estiveram a trabalhar os dois. Na ocasião de sua saída do hotel, a mesma deixou ali ficar uma maleta e pequenos objetos adequados a seu trabalho, tendo ficado de voltar àquele hotel onde ficou devendo a importância de 72$000. Em Janeiro, o referido russo esteve ali naquele hotel sozinho em visita a uns outros seus patrícios e nesse ocasião perguntando-lhe alguém do hotel pela bailarina, o mesmo primeiro negou que a conhecesse e depois disse que a havia deixado porque a mesma em Maceió havia-se querido suicidar não tendo este dito qual a razão que a havia levado a tentar  fazer aquilo.

Referido russo estava a essa altura hospedado na “Pensão Landy”. Consta estar atualmente a referida artista no Pará. Aguardo suas ordens.

Recife, 14 de abril de 1934[8]

Essa cena que encerra o espetáculo, nos permite concluir, inicialmente, que antes mesmo dos episódios de 1937, antes mesmo da instauração definitiva da ditadura do Estado Novo, já eram claros os sinais de que se caminhava para a instauração de um estado de exceção no país. Mesmo chefiando formalmente num regime democrático, Getúlio Vargas havia tratado de criar um Estado cada vez mais presente no cotidiano da população, o crescimento da burocracia estatal caminhava a par com um fortalecimento progressivo do poder Executivo e a montagem de uma rede de vigilância e investigação, a pretexto de combater a ameaça comunista. Vemos essa rede de vigilância funcionando já no ano de 1934, ano em que se veio a promulgar uma Constituição que levaria o país a entrar numa fase de normalidade institucional, dada a excepcionalidade jurídica e política, em que vivera, trazidas pela chamada Revolução de 1930 e a ameaça de guerra civil representada pela chamada Revolução Constitucionalista de 1932, em que em nome da promulgação de uma lei maior e do retorno à normalidade institucional, as elites paulistas tentaram fazer uma pretensa revolução dentro da revolução, na verdade uma tentativa de retorno à situação política anterior, onde elas monopolizavam o controle político do país, uma espécie de contrarrevolução. Se diante dos acontecimentos dos dias 25, 26 e 27 de novembro de 1935, quando grupos comunistas tentaram tomar o poder nas cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro, o governo resolve criar, pela lei n. 71, de 23 de dezembro de 1935, a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), com filiais em todos os Estados, a paranoia crescente em relação a segurança do Estado já vinha se instalando no período anterior[9].

As atividades artísticas, as casas de espetáculo, as instituições destinadas a atividades de diversão, entretenimento e jogo, as festas e diversões públicas já eram fiscalizadas, desde a chamada Primeira República pelo Serviço de Censura às Diversões Públicas. Com a criação da DOPS, elas passam a ser fiscalizadas muito mais intensamente, com a criação por parte do diretor da instituição de um setor destinado a fichar todos os artistas que circulavam pelo Estado, notadamente por sua capital, visando o controle e a vigilância sobre sua circulação e sobre o que faziam, diziam e atividades que realizavam.  Mesmo num período que se dizia democrático, de maneira disfarçada, caminhava-se para a construção de um Estado policial, para a montagem de uma rede de espionagem e investigação de qualquer pessoa que tivesse destaque ou atividade pública, que tivesse nacionalidade estrangeira, que tivesse corpos, costumes, atitudes, vidas consideradas fora da norma ou do padrão, que se envolvessem em conflitos ou reivindicações de caráter político, que se deslocassem constantemente pelo país, que, por algum motivo, se tornassem suspeitas de estar envolvidas em atividades ilegais, subversivas ou de espionagem. Se levarmos em conta esse aspecto, podemos dizer que a democracia no país não passava de uma grande farsa, a esconder o conteúdo cada vez mais policial e autoritário do Estado[10].

Não é mera coincidência que a bailarina investigada é de nacionalidade russa. A paranoia anticomunista era um dos motivos e pretexto para a montagem desse aparato secreto de vigilância e informação voltado para a defesa do Estado, mesmo que em detrimento dos direitos e garantias individuais dos cidadãos. Num momento de crise do Estado liberal, em todo o mundo, quando predominam de forma crescente os regimes totalitários (desde 1922, a Itália vivia sob o domínio do regime fascista, desde o ano anterior, 1933, Hitler havia definitivamente implantado o Estado nazista na Alemanha e o stalinismo havia destruído qualquer tipo de oposição ou resistência no interior da URSS), o Brasil caminhava para implantar, inclusive, legal e juridicamente um estado de exceção, tal como teorizara, ainda no ano de 1921, o teórico alemão Carl Schmitt[11], defendendo a possibilidade de uma ditadura amparada constitucionalmente (qualquer semelhança com reivindicações estampadas em faixas nas recentes manifestações pelo impeachment no Brasil, não é mera coincidência). Podemos dizer que, com o Executivo assumindo cada vez mais poderes excepcionais, funções legislativas, em muitos momentos substituindo ou prescindindo do poder Legislativo, quase sempre intimidado e reduzido em suas prerrogativas, e, por seu turno, controlando cada vez mais o poder Judiciário, ou contando com sua anuência e cumplicidade, o Estado democrático de direito vai se tornando uma pantomima, uma mascarada a encobrir a face cada vez mais discricionária do Estado. O filme O Grande Ditador, dirigido por Charles Chaplin, lançado em 1940, teve grande repercussão e efetividade crítica, justamente, porque explicitou o caráter burlesco da figura do ditador nazista, o caráter farsesco do Estado espetáculo montado pelo nazismo[12]. Chaplin constrói o ditador como uma figura burlesca, um grande fingidor, um grande burlador, um trapaceiro que logra construir uma imagem pública de si, uma imagem positiva, através da intensa propaganda e do uso dos meios de comunicação de massas, como cinema, rádio e jornais. No Brasil, o ditador Getúlio Vargas comparecia, com prazer, para assistir as chanchadas ou os espetáculos de comédia onde sua figura era ridicularizada, embora, por isso mesmo, ganhasse uma face mais humana e simpática. Ao mesmo tempo que gostava de aparecer publicamente acompanhado dos artistas, eles eram costumeiramente fichados e investigados, quando não presos ou submetidos a intermináveis inquéritos[13].

Pelo que se  pode depreender de uma outra “Parte” encontrada em seu prontuário na DOPS, datada do dia 13 de abril de 1934 e assinada pelo Investigador n. 71, Alda Bogoslowa passa a ser investigada a partir do momento que chega ao Estado do Pará, possivelmente acompanhando o seu amante, um funcionário do Cabo-Submarino, quando o Chefe de Polícia daquele Estado solicita informações através de um radiograma ao seu congênere do Estado de Pernambuco[14]. Percebe-se toda uma inquietude em torno da identificação, da identidade das pessoas que chegam em cada localidade. Há o pressuposto de que os indivíduos podiam sempre estar fingindo ser o que não são, que, notadamente os artistas, que são profissionais da performance e da interpretação, que são capazes de assumir distintos personagens, podiam estar representando aquilo que não seriam. A busca da verdade do sujeito, de sua autenticidade, marca a emergência da modernidade no Ocidente e a consequente aparição do indivíduo como o modelo prevalecente de se fazer sujeito.[15] A emergência do indivíduo como figura de sujeito vem acompanhada, por seu turno, pelo surgimento progressivo do que veio a se chamar, no início do século XX, das sociedades de massas[16]. O crescimento das cidades e da aglomeração das populações levou os Estados a investir na criação de uma série de tecnologias de identificação e de saberes voltados para o controle dos indivíduos e para o combate do que seria o indivíduo perigoso politicamente, recalcitrante em relação ao trabalho, criminoso ou desobediente às normas e aos costumes. Há a emergência de uma espécie de Estado paranoide, que vê ameaça em tudo e em todos. Essa paranoia tende a se acentuar quando o governante, quando o regime tem consciência de sua ilegitimidade, de seu caráter farsante. O culto à personalidade, aos chefes, a ênfase de toda propaganda dos regimes totalitários em torno da figura do ditador, só demonstram a insegurança em que eles vivem no que tange a autenticidade e legitimidade de seu poder e autoridade. O perigo de todo governo, de toda a autoridade que se sente e se sabe usurpadora, ilegítima, ilegal, que sabe que seu poder se apoia numa tramoia, numa trama urdida nos bastidores e ao arrepio da normalidade democrática e jurídica, o perigo de todo regime e governo farsante é que são regimes e governantes inseguros e, por isso mesmo, paranoicos por segurança. Todo farsante tende a identificar em todos os demais a mesma vocação e propensão para a farsa; todo farsante teme os farsistas, daí porque muitos governantes temem os artistas.

Um dos grandes méritos do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos foi disponibilizar uma rica documentação, um arquivo, que permite pensar o poder, não apenas em seu funcionamento espetacular e teatral, em seu aparecimento com pompa e circunstância, em sua expressão institucional, mas pensá-lo em seu funcionamento molecular, microscópico,  cotidiano. Ali onde o poder é cinza, como dizia Michel Foucault, em sua microfísica, nas suas relações, tecnologias e práticas mais corriqueiras, ali onde o poder encontra e marca a vida de homens e mulheres famosos ou infames[17]. O arquivo, como trata Derrida[18], é desde o começo o encontro de práticas de registro e comando. Etimologicamente arquivo vem do grego arché, que remetia à casa, ao domicílio do arconte, aquele que ministrava a justiça nas cidades gregas e que, para tanto, produzia e guardava, em sua residência documentos. Desde o nascedouro o arquivo está ligado ao ato de julgar e punir. Ao gesto de colher testemunhos, informações, de produzir um saber que municia o poder e lhe permite e legitima se apossar do corpo do outro e lhe infringir uma pena. O Estado Novo e, todos os regimes de exceção, parecem temer os corpos, o poder dos corpos, seus desejos, suas pulsões, seus poderes, suas possibilidades de transgressão, resistência e revolta. O período da ditadura Vargas foi marcada por uma atenção nunca vista antes no Brasil a uma política e a uma polícia dos corpos. A adoção da educação física como disciplina obrigatória nas escolas deixa isso patente, além do incentivo a práticas como a do escotismo e a anuência a criação de milícias paramilitares de direita que seguiam a disciplina militar. A educação religiosa e, mesmo a educação pública, incluíam e permitiam castigos corporais e a obrigatoriedade do uso do uniforme mostra o caráter militarizado dessa educação. Apoiadas, em grande medida em um discurso dito científico, de base evolucionista, eugenista e higienista, veiculado por médicos, juristas, engenheiros, educadores, o Estado passa a tomar medidas visando cuidar dos corpos dos cidadãos, inclusive investindo no que seria a melhoria da raça nacional. Não chegando a ter uma política extremada de limpeza da raça, como a do regime nazista, adotando oficialmente o discurso da mestiçagem, que não deixava de significar a aposta no branqueamento da população, o Estado não deixa de veicular uma espécie de mística do sangue que, no Brasil, ganha outros contornos à medida que sendo um país de população majoritariamente católica, essa mística ganha tons religiosos claros, afinal Cristo foi um deus imolado e sanguinolento. Todos aqueles que não possuem sangue nacional são imediatamente suspeitos, notadamente japoneses, russos e judeus[19]. Aqueles que possuem corpos fora do padrão de normalidade são recorrentes dentre aqueles que aparecem fichados na DOPS. Os corpos dos artistas, esses corpos que se mascaram, que constantemente mudam de nome, que são “enciclopédicos” como foi definido o cantor, músico e bailarino Nilo Scansetti[20], amedrontam por serem corpos instáveis, de difícil identificação, corpos inclassificáveis, corpos capazes de constantemente farsantear.

Ao mesmo tempo que esse Estado busca o que seria a máxima transparência da vida dos cidadãos, que procura uma espécie de iluminação absoluta das ações mais cotidianas e corriqueiras de seus cidadãos, busca lançar aquilo que Foucault chamou de um olhar panóptico sobre a sociedade, esse Estado passa, cada vez mais, a funcionar nas sombras, a  funcionar no anonimato, a esconder suas ações e representantes[21]. Ainda antes do período ditatorial, a bailarina russa foi investigada por dois homens que são apenas numerados, eles não possuem nomes, embora assinem as “Partes”, mas de forma a dificilmente serem identificados. Um Estado e um governo que nascem de um atentado às leis e à normalidade democrática, um Estado e um governo que, em grande medida é um governo infrator, um governo que surge de uma farsa jurídica, política, midiática, vê, por todo lado, o desrespeito à lei, a infração, a farsada. Tanto Vargas, quanto Mussolini, Hitler ou Stalin eram grandes encenadores, grandes atores quando estavam em público, eles se notabilizaram por farsolarem constantemente, por jactar-se e blasonar-se publicamente, por investirem na construção de uma imagem pública totalmente desligadas do que eram na vida privada ou íntima[22]. Quando Hollywood começava a exportar para todo o mundo técnicas de produção do estrelato, quando o cinema se torna, inclusive, uma arma de propaganda política, como a filmografia de Leni Riefenstahl foi para o nazismo, a criação de órgãos para controle da imprensa e, ao mesmo tempo, voltado para a propaganda do regime, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), surge dessa percepção que o governante é um ator e, melhor ser treinado para não ser um ator canastrão (como parece ser o nosso atual candidato a ator principal, aquele da cena dramática e apelativa “do soco na mesa, dizendo saber lidar com bandidos”). Ora, essa consciência de que o aparecer em público é, cada vez mais, a construção de máscaras, de rostos, de performances, espalha a suspeita de que o outro é também alguém que finge, que mente, que é capaz de farsolices.

Mas creio que O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos nos permite utilizar da ideia da farsa, tomando-a não apenas como um gênero teatral ou cênico, mas tomando-a como um recurso de leitura das próprias tramas sociais e históricas, como um recuso heurístico para ler dadas maneiras do social e do histórico se performatizar e acontecer. Se como defende Erving Goffman[23], a vida social se organiza e se desenrola teatralmente, podemos tomar a ideia de farsa para iluminar as próprias formas de resistência que se puderam fazer e que se podem fazer em momentos em que um Estado e um regime farsesco se instaura. Alda Bogoslowa se apresentava como sendo uma “princesa russa”, prometera retornar ao hotel para pagar um dívida e não o fez, deixando para trás uma mala e outros pertences seus, procedia de São Paulo quando chegou ao Recife, se hospedou em um hotel e logo se transferiu para outro, mesmo sendo vista na companhia de um funcionário do Cabo-Submarino, que chegara a Recife transferido do Pará, viaja a Natal acompanhada de um russo que vendia casas pela Sul América. Aí sofre uma tentativa de assassinato. Em seguida viaja a Maceió onde tenta o suicídio. Pouco tempo depois chega a Belém acompanhada do funcionário do Cabo-Submarino. Essa vida cheia de peripécias, que faz lembrar o roteiro de um melodrama, de uma daquelas radionovelas  mexicanas e cubanas que começavam a chegar ao Brasil, se inscreve sob o signo da suspeita da inautenticidade, do embuste, da farsa, pois ela se diz, se fantasia de princesa russa. Percorrendo as pequenas histórias registradas nesse arquivo, o que fascinam são as astúcias, as peripécias, os imbróglios rocombolescos, as estratégias usadas pelos artistas, por todos aqueles que se sabiam sob vigilância para burlar, para lograr os controles do Estado. Diversas artimanhas são utilizadas no sentido de escapar da maquinaria de vigilância e investigação instalada pelo Estado. Diante de um regime que nasceu de uma grande farsa, os artistas mundanos realizam aquilo que mais sabem fazer:  a arte da burla. Os artistas se tornam farsistas, diante de um regime e de uma sociedade atravessada por desejos, sentimentos, sensibilidades, consciências e práticas fascistas. Se foi possível a instalação de um estado de exceção[24], isso se devia à circulação no social de demandas, de reivindicações, de desejos autoritários e fascistas. Wilhelm Reich[25], ainda nos anos trinta, assim como Walter Benjamin[26], diagnosticaram o fascismo não apenas como o regime político chefiado por Mussolini, mas diagnosticaram o fascismo como produto e como configuração de dados desejos e subjetividades, a prevalência social e cultural, em termos freudianos,  da pulsão de morte, do culto as forças mortíferas, fruto da repressão e sublimação dos desejos, da libido, das pulsões sexuais, o funcionamento daquilo que Hanna Arendt[27] denominou de banalidade do mal. A falta de reconhecimento do outro, do diferente, o predomínio social e cultural da lógica da hierarquia, do privilégio e da superioridade, profundamente ameaçados pelo que seriam as tendências niveladoras do capitalismo liberal; a ameaça aos valores cristãos trazida pela modernidade, pela racionalidade, pela ciência, pela laicidade, pelo comunismo; o aparecimento na cena pública de novos atores e de corpos antes destinados à sombra e à falta de cidadania: operários, mulheres, negros, levam ao aparecimento crescente de manifestações de descontentamento, ressentimento,  raiva, ódio em relação àqueles todos que aparecem como sendo diferentes.

Se o gênero farsesco põe em questão a literalidade dos sentidos, se ele instaura o reino do duplo sentido, da ambivalência moral e ética, se a farsa retira quem assiste do reino das certezas e das verdades absolutas para lançá-las num mundo onde reina a dúvida e a relatividade de pontos de vista, se a farsa desmascara o caráter fabricado dos sujeitos, dos eventos, se ela põe em dúvida a existência de uma realidade imediata e tangível, se o real aparece mediado pelos discursos e pelas performances, os conflitos que permaneciam invisibilizados vêm para a frente da cena e o caráter agônico da vida social, o caráter de jogo de aparências e aparecimentos que constituem o social se explicitam, gerando medo, insegurança e a reação paranoica, odienta e assassina[28]. Para lidar com uma realidade social como essa, cada vez mais, os corpos e personagens que se sentem visados pelas paranoias fascistas, tendem a adotar estratégias de burla e falseamento, aumentando o clima de suspeita, num círculo vicioso. Num regime que nasceu da quebra de confiança nas leis, na normalidade jurídica e institucional, a desconfiança e o disfarce reinam irrefreados.  Num regime apoiado na delação, que premia e contrata, delatores, dedos-duros, que faz as empresas financiarem a rede de espionagem, que torna a alcaguetagem uma profissão, que contrata bandidos e espiões, desde que mudem de lado, que a justiça funciona através de mecanismos extrajurídicos e, muitas vezes ilegais, como a tortura e a sevícia física e psicológica, que a polícias e as forças de segurança atuam na clandestinidade e ao arrepio das leis, a insegurança cotidiana e a farsa se generalizam[29].

Cabia a todos os mundanos, artistas ou não, farsantear todos os dias. A pretensão democrática da transparência e da visibilidade de todos os atos das instituições e autoridades é substituída aqui pelo agir nos porões e subterrâneos, nos espaços segregados e vigiados, numa verdadeira geografia do terror e da morte. Passa a haver uma espécie de cidade ou de país paralelos, uma cartografia do medo, da vigilância, da suspeita que convivem e se interpenetram com outras cartografias da cidade, como as cartografias das delícias, do nomadismo, das artes e da política. Walter Bank[30], nascido em Nova York, é um homem-mulher, que faz espetáculos de dança e canto lírico, onde encarna uma bailarina clássica e uma soprano. Ilusionista, transformista, deixa dúvidas sobre seu verdadeiro sexo, mas ele-ela parecem encarnar também o Prof. Walter Bank, quiromante e ocultista norte-americano. Em tempos de farsa e de sombras, Walter ilude, se transforma e lida com forças e possivelmente com coisas e pessoas ocultas. Seu corpo e sua identidade equívoca incomodam um poder preocupado em classificar e fichar, em identificar cada um.  Nessa mesma época outro transformista passa pelo Recife causando sensação e muitas dúvidas: ele era homem ou mulher? Em caso de mobilização por causa da guerra ele seria ou não convocado?: Norberto Américo Aymonino ou Aimon[31], argentino naturalizado brasileiro, embora fosse homem “tinha voz de mulher, corpo de mulher, pele de mulher, braços e pernas de mulher” estando em toalete feminina ou vestido de calça, paletó, colarinho e gravata. Já Maria Wiesner[32], não era um símbolo do amor, não era um canto de felicidade no jardim discreto da penumbra, não era nenhuma Julieta ou Amélia, não era uma mulher ternura, mas uma mulher-macho, sim senhor, mulher que deixou de lado as canções maternas para se dedicar à luta livre. Austríaca, chega ao Brasil integrando a Trupe Internacional de Mulheres Lutadoras. Corpos além de estranhos, corpos estrangeiros. Ao invés de carícias, tapas a trinta cruzeiros por noite. Contrariando o que o regime e  o que a maioria da sociedade esperavam das mulheres, Maria não era nenhuma santa, não era uma mulher pura, recatada e do lar. Não sendo Julieta, talvez quanto a Romeu ela tivesse a mesma opinião de Maria Montesinos, bailarina espanhola, provocante e cosmopolita:

O que mais me desagrada em Romeu é a falta de iniciativa. Se tivesse sugerido a Julieta que fugissem juntos, ela, apaixonada como estava, tê-lo-ia acompanhado de olhos fechados. Mas Romeu, estúpido, preferiu a isso ficar ridiculamente pendurado na escada de corda, atirar-se ao chão na cela de frei Lorenzo e a ingerir, num cemitério, como uma costureirinha qualquer, uma pastilha de sublimado!… Horrível![33].

Reinaldo Rodrigues, de nome artístico Charles Morris[34] (as trocas de nome, de identidade entre os artistas também os faziam ser suspeitos de insinceridade e de atividades obscuras e ilícitas, a troca de nomes era um dos recursos da farsa), artista cubano, “pitoresco, imprevisto e engraçado sapateador negro”, travestia-se de palhaço para apresentar números “espirituosos, modernos e palpitantes de originalidade. A criatividade, o imprevisto, a mascarada, tudo de que o estado de exceção busca evitar. O riso e a galhofa, notadamente se vitima os farsantes no e do Estado, incomoda e leva à repressão.  Carmem Sylvia Brown Muñefelt[35] era uma mulata norueguesa, isso mesmo, uma mulata nascida na Noruega, mas que portava nacionalidade chilena, sendo conhecida como a Vênus de Bronze, sendo cantora e bailarina. Segundo ela mesma, “uma menina sem juízo, que se fez artista na Dinamarca dançando músicas típicas nas pontas dos pés, depois Alemanha, Berlim, valsas em Viena; um salto para a América Latina, desembarque em Santiago, Peru, Colômbia, Uruguai, Argentina, cantou na América; tendo se inteirado das danças negras vai para a Libéria, aí entrando em contato com as gentes das selvas se tornando senhora de todas as particularidades de suas festas selvagens; sentindo saudade do povo hospitaleiro da América do Sul, um dia saltou num porto da Venezuela, percorreu o Equador e acabou na quinta avenida em Nova York, um mosquito diante de um elefante, uma partícula da grande massa desconhecida, dinâmica, admirável. Numa casa de fotografias viu uma foto da Baía da Guanabara, quase enlouquecida de beleza tomou um navio e desembarcou em Buenos Aires, de onde rumou para a terra maravilhosa pela primeira vez, vindo queimar a pele em frente à praia de Copacabana, contando com as graças do Senhor do Bonfim para que permanecesse por muito tempo no Rio de Janeiro”. São personagens como esses que, na vida e nas narrativas que fazem de si mesmos, não deixam de suscitar o riso, mas também a estranheza, o incômodo. A Vênus de Bronze, a mulher nômade por excelência, que acaba se tornando uma selvagem, uma nórdica negra, uma personagem múltipla e complexa e, por isso mesmo, fascinante e perigosa personagens como essa desnorteiam a máquina de classificação e identificação do poder de Estado, elas provocam um curto circuito no funcionamento dessa máquina estatal. Por demais barroca, a Vênus é uma espécie de belo golpe na tecnologia, na estética e na ética cinzenta desse Estado de exceção. À exceção ela responde com o excesso, com a exuberância, com a inquietação, com a alegria, com o brilho de sua pele e de seu sorriso; ao desejo de morte reinante nesse Estado de exceção, ela responde com sua vida transbordante, ela não se deixa aprisionar por fronteiras, por nacionalidades, por identidades, ela está sempre em busca de novos portos. Faceira e farsista ela é toda performance, no corpo e na fala. Assim como o Dr. Wandy[36], ela é uma metamorfose humana, ela borboleteia pelos códigos, entrando e saindo das fronteiras para sua vida e para seu gênero, ela é uma mulher livre, viajada e viajante, uma mulher que brinca com as palavras, os conceitos, os adjetivos com que o discurso da vigilância ou o discurso jornalístico tenta lhe aprisionar, desenhando para ela um perfil, físico, psicológico e comportamental que permitisse identificá-la sempre que necessário. Ela está no arquivo, mas dele escapa uma grande gargalhada, podemos, lendo seu relato, escutar as gostosas risadas que deu após encerrar essa entrevista. Lendo sua ficha e seus relatos não podemos deixar de rir das pretensões do poder de tudo dizer, de aprisionar alguém em um perfil definitivo.

No momento em que o país assiste, estupefato, à encenação de outra farsa jurídico-política-midiática, em que o caráter farsante e farsesco do sistema político e jurídico brasileiros se explicita de forma contundente; em que as elites empresariais e setores importantes da sociedade brasileira pretendem nos fazer todos de patos; em que se reivindica abertamente a instalação de um Estado de exceção no país; em que desejos e comportamentos fascistas se espalham pelo corpo social e pela cultura do país; em que as ruas e as redes sociais nos apresentam um espetáculo entre o burlesco e o grotesco; em que os grandes grupos de mídia veiculam descaradamente a mentira, o engodo, a falsificação de qualquer verdade ou realidade, ter acesso e ler esse arquivo recuperado pelo projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos torna-se pedagógico e educativo. Mais uma vez, as primeiras vítimas dos farsantes foram os artistas, foi a gestão e a política cultural. Os farsantes não gostam de concorrência, notadamente daqueles que têm talento e inteligência. O teatro de horrores que assistimos no dia 17 de abril de 2016, o dia da infâmia, em que atores trapaceiros e bufões cínicos golpearam mais uma vez a democracia brasileira, para atender seus interesses individuais mais inconfessáveis e para atender aos interesses de classe também não publicáveis, por impopulares e antinacionais, torna esse material duplamente valioso, pois com ele podemos aprender as artimanhas e ridicularias do poder (quem poderia supor lá nos anos trinta que um dia um ator pornô e fanáticos evangélicos seriam travestidos de educadores e definiriam que tipo de escola e educação devemos ter; que um criacionista seria responsável pela ciência e tecnologia no país; que um corrupto se responsabilizaria pela transparência do Estado e alguém que não consegue ter a mínima relação civilizada com ninguém fosse responsável pelas relações exteriores), mas também com ele podemos aprender formas de resistir, de transgredir, de entrar na farsa para destruí-la por dentro, sem perder a alegria e o humor. Se a alegria é a prova dos nove, como dizia Oswald de Andrade[37], creio que não há coisa mais efetiva para desmascarar a farsa que estamos vivendo do que assumir e praticar o escracho, sermos farsistas contra os golpistas e fascistas. Temos que fazer dessa farsa um mero intervalo, um curto interregno em nossa democracia. Temos muito que aprender, nestes dias, com os artistas mundanos, que sobreviveram, apesar de tudo, que burlaram os dias sombrios em que viveram, que burlaram o próprio silêncio a que estavam submetidos nesse arquivo e cujo riso e fulgor chegaram até nós apesar de todas as tentativas de afogamento, de silenciamento, de aprisionamento de que foram vítimas. Se no Brasil a história parece se repetir como farsas trágicas, a vida de Ana Palmero Chaves[38] ou Anita Palmero pode nos inspirar, pois mesmo diante do aviso de que deveria parar de rir porque o Exmo. Sr. Interventor do Estado Agamenon Magalhães se encontrava no recinto, ela que estava bebendo na companhia de amigas e oficiais americanos, não se conteve com a reprimenda, que achou ainda mais hilária, continuando a gargalhar ainda mais escandalosamente, ferindo os ouvidos sensíveis do poder, sendo convocada a comparecer, no dia seguinte, à delegacia, para explicar o seu riso. Ridículo máximo de um poder farsante, aquele que quer interditar o riso, que quer eliminar a farsa. Aquele que quer aplicar o belo golpe de não ter o seu verdadeiro nome revelado: GOLPE!

 

Referências Bibliográficas

[1] Para uma reprodução historiográfica da farsa ver: SILVA, Hélio. A ameaça vermelha: o Plano Cohen. Porto Alegre: LPM, 1980.

[2] CAMARGO, Aspásia et ali. 1937: o golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.

[3] CARONE, Edgar. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo: Difel, 1976.

[4] CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexon, 2010, p. 286.

[5] Ver: MACHADO, Irley. A farsa: um gênero medieval. ouvirOUver,  n. 5, p. 123-137, Uberlândia, 2009.

[6] BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/ Brasília: Hucitec/ Edunb, 1999.

[7] Ver: SILVA, Hélio. Fim da ditadura Vargas (1946-1954). São Paulo: Editora Três, 1998.

[8] Prontuário individual n. 3614, doc. 05 e 06. Fundo DOPS. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. Disponível no site Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/alda-bogoslowa/. Acesso em 04 de julho de 2016.

[9] Ver: Maciel, Ayrton. A história secreta: prontuários do Dops. Recife: Bagaço, 2000.

[10] Ver: SILVA, Ricardo. A ideologia do Estado autoritário no Brasil. Chapecó: Argos, 2004.

[11] Ver: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.

[12] O Grande Ditador. Direção, Produção e Roteiro: Charles Chaplin. United Artists, 1940.

[13] Ver: NETO, Lira. Getúlio (1930-1945: do governo provisório ao Estado Novo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[14] Prontuário individual n. 3614, doc. 04. Fundo DOPS. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/alda-bogoslowa/. Acesso em 04 de julho de 2016.

[15] Ver: ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

[16] Ver: ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Barueri: Vide Editorial, 2016.

[17] Ver: FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In: Microfísica do poder.  4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 209-228.

[18] Ver: DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

[19] Ver: LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas: Unicamp/ Papirus, 1986.

[20] Prontuário individual n. 2963, doc. 17. Fundo DOPS. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/nilo-scansetti/. Acesso em 04 de julho de 2016.

[21] Para uma discussão sobre panóptico e panopitismo, ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: uma história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977.

[22] Ver: DIEHL, Paula. Propaganda e persuasão na Alemanha nazista. São Paulo: Annablume, 1996.

[23] Ver: GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.

[24] Para a noção de Estado de exceção ver: AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2015.

[25] Ver: REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

[26] Ver: BENJAMIN, Walter e SCHOLEM, Gershom. Correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2015.

[27] Ver: ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

[28] Ver: PRIEGO, Miguel Ángel Pérez. Teatro medieval. Barcelona: Cátedra, 2009.

[29] Para a relação entre capitalismo e discurso farsante ver: ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2011.

[30] A estreia do artista Walter Bank será um acontecimento para o público uberlandense. Correio de Uberlândia, Uberlândia, 12 de novembro de 1943. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/walter-bank/. Acesso em 04 de julho de 2016; Prof. Walter Bank, quiromante e ocultista norte-americano. Palace Hotel. A Tribuna, Belo Horizonte, 25 de dezembro de 1943. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/walter-bank/. Acesso em 04 de julho de 2016.

[31] A Vida da Cidade: Aimond, o transformista e outros artistas. Diário da Manhã, Recife, 27 de dezembro de 1941. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/norberto-americo-aymonino/. Acesso em 04 de julho de 2016.

[32] MARANHÃO, Zilde de E. Mulher macho, sim senhor! Tapas em vez de beijos – “Yo no soy chica”. Entram Paulo Malta, Altamiro e Yves e perde-se um assunto. Jornal Pequeno, Recife, 15 de janeiro de 1951. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/maria-wiesner/. Acesso em 04 de julho de 2016.

[33] Notas de Arte: Maria Motesinos. Correio Paulistano, São Paulo, 06 de fevereiro de 1938. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/maria-montesinos/. Acesso em 04 de julho de 2016.

[34] Theatro: sapateador funambulesco. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 15 de junho de 1935. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/reinaldo-rodrigues/. Acesso em 05 de julho de 2016.

[35] Uma bailarina do mundo. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 1945. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/carmen-silvia-brown-munefelt/. Acesso em 05 de julho de 2016.

[36] A Festa da Mocidade. Jornal Pequeno, Recife, 04 de janeiro de 1938. http://obscurofichario.com.br/lugar/festa-da-mocidade/. Acesso em 05 de julho de 2016.

[37] Ver: ANDRADE, Oswald. A alegria é a prova dos nove: antologia. São Paulo: Globo, 2011.

[38] Prontuário individual n. 9301, doc. 03. Fundo DOPS. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. Disponível no site O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. http://obscurofichario.com.br/fichario/anita-palmero/. Acesso em 05 de julho de 2016

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