DOPS: A Lógica da Vigilância e do Controle Político e Social em Pernambuco entre 1930 e 1958

  1. O aparato de vigilância e controle social: panorama inicial

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O objetivo deste artigo é apresentar aos visitantes deste site informações que auxiliem a compreensão do funcionamento do aparato repressivo do Estado, desde as incipientes ações de construção do que se entenderia como a lógica da vigilância e do controle social em Pernambuco e seu desenvolver no período compreendido entre os anos de 1930-1958, que corresponde ao corte cronológico da pesquisa que ampara o projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos.

As primeiras incursões do Estado nessa direção foram materializadas na criação de órgãos administrativos que tinham como atribuição o controle preventivo do social. Foi com este viés que a antiga Repartição Central de Polícia (RCP), com atuação até o final dos anos 1920 e então responsável pela segurança pública no estado, estruturou paulatinamente a vigilância e o controle social em Pernambuco, por meio dos órgãos a ela subordinados, tais como o Serviço de Censura às Diversões Públicas, a Divisão de Fiscalização de Hotéis e Casas de Cômodos, a Fiscalização Geral de Jogos e a Fiscalização do Trabalho Noturno da Mulher.

Inicialmente, o controle social realizado por esses órgãos era dirigido aos segmentos populacionais considerados “de risco”, que passaram a ser alvo das ações de prevenção e combate de doenças infectocontagiosas associadas aos “prazeres” (tuberculose, sífilis e demais doenças sexualmente transmissíveis). Os órgãos vinculados à RCP atuavam também no controle das “vicissitudes” (jogatinas, álcool, práticas de “seitas satânicas”, briga de rinha e carteados), por atentarem contra a concepção de “ordem” do Estado, contra a “moral e os bons costumes”.

A partir de 1930, este conjunto de “serviços” adquiriu uma modelagem mais específica, posta em prática com o reordenamento e centralização da máquina administrativa, promovidos por Getúlio Vargas nos anos seguintes à chamada Revolução de 30. Via-se em Pernambuco – um dos estados considerados problemático no quesito “ordem pública” – o agravamento paulatino da “desordem”, motivado, segundo a polícia, pelo combate á “pecha comunista” que fragilizava a estrutura social, já comprometida por uma imagem de um estado “briguento”.. Tal imagem era ampara na tradição revolucionária e de insurreições ocorridas ao longo de sua história, estimadas por Rubim Santos (AQUINO, 2009), em mais de 300 movimentos de insubordinação à ordem instituída, desde o período colonial até o período republicano.

A criação da arrojada estrutura da Secretaria de Segurança Pública (SSP-PE), em 1931, usufruiu de significativa atenção do Governo do Estado. O novo órgão tinha ligação direta com o Palácio dos Campos das Princesas e ocupava um quadrante de prédios próximos ao centro de comando do governo (Rua da Aurora, 405). Sua instituição promoveu a maior iniciativa voltada à limpeza e ao controle do tecido social. As ações repressivas foram anunciadas em resposta aos altos índices de ocorrências criminais de tipologias diferentes que atentavam contra a ordem política e social.

A substituição da antiga Repartição Central de Polícia, que há muito tempo já apresentava sinais de ineficácia frente à crescente criminalidade e perturbação da ordem, pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) ocorreu, na avaliação da polícia, “em boa hora”. Pernambuco alarmava o cenário político-governamental local e nacional, tanto pela recorrência dos crimes comuns (contra a propriedade privada e contra a vida, como assassinatos, estupros, furtos, homicídios), como em razão do alto índice de crimes considerados “subversivos”, “abusos” do inquietante e imprevisível crime político cujo ápice, para a polícia, se deu no movimento extremista de 1935.

Ocorrida nos dias 25, 26 e 27 de novembro de 1935, no Recife (Pernambuco), Natal (Rio Grande do Norte) e Rio de Janeiro (Distrito Federal), a “Intentona Comunista” é considerada um divisor de águas para os órgãos de segurança e as Forças Armadas. O movimento significou uma tentativa concreta de tomada do poder pelo Partido Comunista Brasileiro e, ainda que tenha sido fortemente reprimido, instou o Estado a tomar providências com o objetivo de punir com severidade esses e outros atos considerados subversivos e, portanto, lesivos à ordem e a segurança nacional.

Em face de uma conjuntura que ameaçava o status quo da ordem vigente e do Estado, foi criada em 23 de dezembro de 1935, pela Lei nº 71, a Delegacia de Ordem Política e Social. A chamada DOPS passou, então, a figurar como o mais temido órgão público, cujos tentáculos penetravam o tecido social, promovendo uma devassa no cotidiano das pessoas. Suas atribuições eram as seguintes[1]:

  1. Proceder inquérito sobre crime de ordem política e social;
  2. Exercer as medidas de polícia preventiva e controlar os serviços cujos fins estivessem em conexão com a ordem política e social;
  3. Combater o comunismo.

Desde sua criação, a Delegacia de Ordem Política e Social apresentou uma característica peculiar: uma mudança frequente em suas atribuições administrativas a diferenciava de outros órgãos, principalmente quanto às funções regimentais ao longo de seus 55 anos de atuação (1935-1990). Essas transformações eram diretamente ligadas à conjuntura político-social de cada época, demonstrando que as alterações sofridas em sua estrutura administrativa refletiam as turbulências sociais. Assim, todas as vezes que uma mudança ocorria no cenário político ameaçando a ordem, a Secretaria de Segurança Pública, à qual a DOPS era subordinada, extinguia ou criava um serviço ou atribuição nova para esse órgão.

Quadro 1 – Modificações na denominação da(o) DOPS-PE [2]

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O quadro demonstra como este organismo repressivo do Estado foi se modificando ao longo de sua trajetória, sofrendo alterações até mesmo na sua nomenclatura. Assim, quando nos referimos ao órgão no período de 1935 a 1960, o chamamos de a DOPS, por se tratar de uma delegacia. Quando se iniciam as manobras para a instalação de um regime de exceção no Brasil, a partir dos anos 1960, há uma nova reestruturação do órgão que, uma vez ampliado, passa a ser denominado de o DOPS, referindo-se agora ao Departamento. As mudanças são realizadas ao sabor das necessidades impostas pelo cenário político e social.

É importante acrescentar, como outra característica desse órgão policial especializado, seu caráter multifacetado. Suas atividades não se restringiam apenas a investigar, coletar provas, elaborar inquéritos e remetê-los a juízo; por ser dotado de competência cartorial, o órgão tinha também a capacidade de emitir, a qualquer hora do dia e da noite, mandados de busca e apreensão ou mandados de prisão contra um suspeito, bem como de remeter um caso a outras instancias judiciárias. Sua atuação se dava ainda no limiar de uma tênue fronteira que separava a ordem da desordem: às vezes agia no amparo da lei e imbuído de seu cumprimento; em outras, violava totalmente os princípios legais, éticos e morais, com vistas a colher provas, confissões ou arrancar uma delação.

 

2. As Atividades da DOPS

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As funções da DOPS-PE eram divididas em atividades-meio e atividades-fim. As atividades-meio eram aquelas que davam o suporte necessário para que o órgão funcionasse – a exemplo dos setores de administração, transporte, almoxarifado, pessoal, etc. As atividades-fim estavam ligadas às principais competências e funções do órgão, tais como investigação, censura e repressão  – o que ainda incluía o serviço de cartório, funcionando 24 horas. Para cada competência existia uma série de desdobramentos burocráticos. Por meio delas, foram coletadas, produzidas, manipuladas e disseminadas as informações sobre as pessoas e instituições que geraram os documentos pertencentes ao acervo DOPS-PE. No escopo de suas atividades-fim, interessam-nos aqui a investigação, a censura e a repressão, fazendo-se necessário tecer alguns esclarecimentos sobre cada uma delas.

  • A Investigação

Corresponde ao procedimento usado quando se impõe a necessidade de averiguar denúncias, pesquisar uma pista, informe ou delação, coletar informações ou diagnosticar a atividade de pessoas físicas ou jurídicas. Constituía-se em um passo inicial, empregado quando havia algum indício ou suspeita que necessitasse ser comprovada, podendo concluir pela existência ou não do suposto “delito”, fosse este cometido por uma pessoa comum, atuando fora do âmbito das repartições públicas, ou por um funcionário público empossado no cargo, o que acabava envolvendo uma instituição.

A base deste serviço se dava pelo acompanhamento sistemático das informações obtidas a partir de atividades de busca por subsídios e/ou de vigilância preventiva do objeto da investigação. A coleta, registro, manipulação e disseminação dessas informações geravam uma documentação característica, formada por relatórios de campana, partes de serviço, informes, sindicâncias, boletins de ocorrência, pedidos de busca, radiogramas, fotografias, recortes de jornais, telegramas, etc.

Para guardar e localizar essas informações, a polícia criou um complexo sistema de arquivamento, composto por um fichário geral, onomástico, remisso e alfanumérico com aproximadamente 125 mil fichas, que remetem aos prontuários individuais; um fichário por assuntos, incompleto, contendo cerca de 1500 fichas, que remetem aos prontuários funcionais; um fichário com os codinomes de militantes políticos e outro dos próprios investigadores que eram monitorados pela DOPS mediante alguma denúncia que chegasse às delegacias de polícia ou à própria sede da polícia política; e, por fim, um fichário de mesa com duas gavetas, formado entre 1934 e 1958, composto de aproximadamente 1.100 fichas relativas a artistas brasileiros e estrangeiros, das quais apenas 403 fichas chegaram às mãos dos pesquisadores envolvidos com o projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, não tendo sido possível identificar os motivos que levaram ao desaparecimento das demais. Os verbetes em questão apresentam foto e dados a respeito do artista “fichado”: nome, data de nascimento, filiação, país de origem, profissão, endereço de hospedagem e o local de trabalho no Recife/Pernambuco, entre outras informações. O curioso neste fichário é que ele denuncia a opção da DOPS/PE de separar as informações referentes aos artistas que exerceram atividades culturais/laborais em sua passagem por Pernambuco dos demais conjuntos de registros, revelando um tratamento diferenciado para a categoria e um olhar de desconfiança e suspeição para esse segmento da população.

  • A Censura

Trata-se do procedimento de controle político-cultural adotado após a investigação ou em paralelo a ela, quando constatada a existência ou apenas indícios de alguma atividade suspeita, considerada nociva à ordem ou que indicasse subversão. Na censura, o que está sob controle são as ideias, o pensamento, o comportamento suspeito ou de alteridade, contrário ao estabelecimento da ordem emanada pelo Estado. Como resultado desta atividade dava-se a abertura de prontuários (individuais e funcionais) para pessoas e/ou entidades/instituições consideradas “suspeitas”, que passavam a ser alvo permanente de vigilância e tornavam-se objetos de investigação – seja por atuarem como formadoras de opinião, seja por agregarem números consideráveis de pessoas em suas sedes (fábricas, igrejas, sindicatos), seja por adotarem postura contrária ao sistema, atentando ainda contra a moral, valores, normas e “bons costumes”.

Nesta categoria se enquadravam bares, bordéis, cabarés, casas noturnas, cassinos, hotéis, clubes, cinemas, teatros e outros espaços do circuito da diversão e da cultura do Recife, abarcando as atrações que compunham suas respectivas programações e os meios de comunicação (jornais e rádios). Neste sentido, o acervo DOPS-PE guarda relíquias como, por exemplo, os pedidos de licença para funcionamento de um espaço, para realização de espetáculos de companhias teatrais, desfiles carnavalescos ou até mesmo festas religiosas. Os organizadores deviam solicitar com antecedência autorização para tais apresentações ao Comissário. Além de preencherem um formulário com este fim, forneciam o roteiro de atividades, para que a polícia pudesse emitir o alvará de funcionamento ou a autorização para sua realização. A censura ao discurso e às ideias constituía o vetor principal desse procedimento, mas não o único. Observa-se também a censura aos comportamentos, rotulados de impróprios ou inadequados pelos censores.

Na atividade da censura, rastreava-se a circulação de ideias consideradas perigosas, ideologias contrárias ao poder instituído. Assim, foram apreendidos, entre outros objetos e documentos, panfletos, cartazes, manifestos, charges, cartuns, folders, livros, repertórios musicais e roteiros de peças teatrais. No entanto, a censura às propagandas políticas era a mais comum, tendo gerado uma quantidade expressiva de documentos apreendidos, que formam um banco de dados sobre políticos partidos, campanhas, eleições, manifestações etc. Nesta categoria o Partido Comunista aparece como o alvo principal da repressão, com o mais volumoso e rico conjunto documental sobre o tema. A propaganda clandestina torna-se o elemento mais visado pelos órgãos de segurança e censura, por se configurar, enquanto crítica, questionamentos e manifestações num ato subversivo, cujos crimes eram taxados pela polícia política da SSP/PE, por agitação política, subversão e até por terrorismo. Neste aspecto encontra-se salvaguardada no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE) uma profusão de diferentes tipos de documentos, que serviam como elemento de prova do “delito” e do “crime” cometido, sendo um pretexto para o enquadramento dos perseguidos por uma extensa rede de vigilância, composta por uma cadeia de investigadores, colaboradores, informantes anônimos e delatores a serviço da própria polícia.

  • A Repressão

Na hierarquia das atividades-fim da(o) DOPS, as atividades de repressão destacam-se como procedimento último no rol das ações desenvolvidas pelos agentes do órgão. É aplicada quando comprovada a existência da atividade considerada subversiva. Em consequência, dava-se a abertura de um prontuário individual e/ou funcional referente, respectivamente, à pessoa e/ou à instituição a que o suspeito estivesse ligado, buscando-se reunir uma coletânea de “provas” incriminatórias sobre o objeto investigado, que viria a compor o dossiê-processo – quando não se abria apenas o inquérito ou a sindicância, que seria base para o enquadramento do acusado em diferentes níveis. É importante acrescentar que a ação repressiva se dava preliminarmente no campo das ideias e comportamentos. Somente depois, com o desenrolar dos acontecimentos, podia passar para o campo da perseguição, prisão, castigos físicos, tortura e morte.

 

3. Informação: Elemento legitimador da repressão

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Um dos focos deste artigo é mostrar a lógica de funcionamento da(o) DOPS-PE, identificando os mecanismos de poder que lhe atribuíam significado. Nesta perspectiva, a informação desponta como exponencial na medida em que constitui a unidade elementar do discurso (FOUCAULT, 2003), que vai sendo gerado, reforçado, repetido e repassado entre diversas instituições, órgãos oficiais de segurança, e também segmentos não oficiais . Estes últimos incluíam colaboradores anônimos, que atuavam como informantes infiltrados de forma camuflada em repartições públicas de diferentes instâncias (municipal, estadual ou federal) ou que operavam em locais de interesse estratégico para as investigações, tais como hotéis (camareiras, porteiros, gerentes, taxistas), bancas de revistas, padarias, tipografias, sapatarias, igrejas (padres e fiéis), sindicatos, agremiações, etc. Os efeitos deste discurso se ramificavam no tecido social, adquirindo materialidade e constituindo a base do poder-saber policial, na medida em que este, para exercer as funções de vigilância, rastreava os possíveis nichos de subversão, as atuações tidas como escusas e/ou suspeitas de pôr em risco a ordem e os bons costumes e que, por isso eram consideradas pelo aparato policial como “perigosas” para o país.

Desta forma, a informação coletada pelo investigador em campana ou adquirida por ele através de algum colaborador, informante anônimo, ou ainda em confissão, após submeter o investigado à tortura, é transformada em um importante elemento de sustentação do aparato repressivo. Como tal, ela se estabelece no conjunto de práticas e discursos produzidos para combater o que se nomeia desordem (BALANDIER,1997) – razão de ser das ações de vigilância dos órgãos de informações amparados na coleta, na manipulação e disseminação de dados que servem como provas construídas num intricado meio burocrático, usadas para justificar o esquadrinhamento da pessoa sob suspeição.

Nesta direção, analisar a formação do saber policialesco e a forma como esse “conhecimento” operava contra diferentes segmentos da sociedade durante o período significa percorrer os trâmites informacionais para compreender como se dava o processo de produção da informação, do saber sobre o vigiado. É preciso analisar detalhadamente a operação do registro policial, constituída pelas etapas de coleta, o tratamento e difusão da informação sobre alguma pessoa, atividade ou instituição considerada “subversiva” –  base da vigilância permanente que deveria ser exercida por este órgão. Faz-se necessário, portanto, identificar e entender uma série de procedimentos burocráticos de registro e circulação de informações sobre indivíduos e entidades, que tinha por objetivo a identificação e o conhecimento das práticas consideradas suspeitas, a coação e intimidação dos envolvidos, a proibição das ações/ atividades consideradas “perigosas” ou que atentassem contra a moral e os bons costumes da sociedade, e o enquadramento dos suspeitos mediante a construção do delito e a tipificação do crime.

É importante asseverar que a ideia de crime sofrerá um deslocamento, sobretudo o crime político, no sentido de se fazer uma continua e progressiva mudança quanto ao que a polícia e a lei entendiam por crime. Verifica-se o aperfeiçoamento das táticas de descrição do delito ou do que seria identificada como crime e a consequente ampliação das modalidades criminais nominadas pela lei e mapeadas pela polícia, por meio de uma série de procedimentos administrativos de registros, incluindo novas definições e parâmetros de criminalidade onde se justificava/calcava a ação dos órgãos da lei.

Tudo isso tinha como fim controlar e coibir as atividades suspeitas, não aceitas pelos órgãos policiais públicos, pois, como afirma Foucault (1993, p.37), a “informação [policial] penal, escrita, secreta, submetida, para construir suas provas, a regras rigorosas, é uma máquina que pode produzir a verdade na ausência do acusado”. Neste raciocínio, a informação, ela própria, constitui a força motriz das operações preventivas, ostensivas e repressivas dos órgãos de vigilância, incorporando e materializando toda a instrumentalidade do poder-saber repressivo e atuando em condições extremamente favoráveis para produzir a ordem, manifestada através de corpos disciplinados e silenciados individualmente, bem como no silenciamento do “corpus coletivos” das massas de trabalhadores, por exemplo.

Portanto, são as informações, obtidas diretamente da população e/ou de ações de vigilância preventiva do objeto alvo da investigação, que sustentam as ações do aparato policial, que atua invadindo o mundo privado de pessoas, famílias, grupos, órgãos públicos, entidades e empresas, alterando seus cotidianos e tachando como suspeitos determinados “tipos”, grupos e segmentos – a exemplo dos artistas, estigmatizados ao ponto da DOPS/PE criar um fichário próprio para a categoria. Contudo, a produção deste conjunto de documentos permite que as atuais e futuras gerações conheçam universos pouco visíveis, entre eles o circuito de cultura e diversão do Recife focado pelo projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos.

 

4. Evolução da estrutura administrativa da DOPS-PE e sua articulação em rede nacional e internacional

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É possível observar três momentos significativos na trajetória da(o) DOPS. O primeiro é anterior à sua criação e diz respeito ao período 1931-1934, onde se percebe a existência de uma polícia política se estruturando com a intenção de formar um segmento especializado no combate às atividades políticas; tais atividades passam a ser criminalizadas, ou seja, caracterizadas como crime político, por constituírem uma crescente ameaça ao poder instituído. O que antes era o Serviço de Censura as Diversões Públicas passou, então, a atuar como uma Delegacia, com atribuições mais amplas e complexas. Este organismo foi oficialmente criado, em suas linhas gerais, pela Lei 71, em 23 de dezembro de 1935 – após o levante Comunista ocorrido em novembro do mesmo ano no Rio Grande do Norte, Pernambuco e no Rio de Janeiro (então Distrito Federal).

O segundo momento significativo destaca-se como uma preparação, já no período da Segunda Guerra Mundial, de uma forma de atuação que viria a ser reeditada e ampliada no decorrer do regime civil-militar instaurado em 31 de março de 1964 – quando a polícia política passou a agir de forma articulada, integrando os órgãos e instâncias militares e policiais no controle da “desordem” do país.

Esta atuação foi posta em prática já a partir de 1938, quando foram impostas Estado de Pernambuco novas necessidades de defesa nacional, mormente após os ataques aos navios brasileiros atribuídos aos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Neste contexto, a DOPS voltou-se para o combate às ideias totalitárias, não apenas as de esquerda, que compreendiam todas as dissenções do comunismo (o marxismo, o trotskismo e o leninismo) identificadas pelo corpus policial, mas também as de direita (no caso, o integralismo, o fascismo, o nazismo e o falangismo[3]).

Neste momento se operou uma importante alteração em sua linha de ação, quando a DOPS-PE passou a integrar uma rede de espionagem internacional, atuando ao lado da Christian Children’s Fund. Inc. de Richemont, embrião da futura CIA, do Bureau Central Nacional da INTERPOL e da Polícia Federal e Marítima, no intuito de coibir, no Brasil, o avanço da Gestapo – polícia secreta de Hitler, cuja atuação estava em franco crescimento no país[4].

A polícia passou a agregar elementos de uma vigilância preventiva, que atuava monitorando ideias, comportamentos sociais e segmentos da população considerados perigosos – motivo pelos quais os alemães radicados em Pernambuco passaram a representar, em primeira mão, alvo principal da repressão, ao lado dos já perseguidos comunistas. Para a polícia, não importava se as ideias eram de direita ou de esquerda, e sim o grau de ‘nocividade’ e a ‘perturbação’ que poderiam provocar no tecido social, ameaçando as bases de organização do Estado.

No interior da estrutura administrativa da Delegacia de Ordem Política e Social, entre 1939 e 1946, podemos observar que, além de suas atribuições originais, o organismo agregou outras funções, de maneira que a sociedade passou a ser monitorada – sobretudo os segmentos que maior tensão provocavam, fosse nas manifestações, fosse no teor dos discursos que condenavam, entre outras coisas, a interferência dos Estados Unidos no Brasil.

Como já vimos, a lógica do aparato organizacional da Delegacia de Ordem Política e Social estava condicionada ao contexto político do momento, ocasionando a alteração sistemática de suas atribuições e competências. Entre as demandas externas advindas da Segunda Guerra Mundial, figurava a necessidade de coibir o avanço das ideias perigosas, a subversão e o aumento da espionagem, promovendo a defesa da nação contra as possíveis agressões provocadas pelos agentes internos e externos.

Cria-se então o que seria denominado de “cinturão” – na ótica policialesca, uma espécie de “cordão de isolamento” direcionado aos segmentos considerados perigosos, que passam a ser monitorados pela Polícia Marítima, Forças Armadas, órgãos de espionagem internacional e pelas DOPS em caráter nacional, no intuito de rastrear a rede de espionagem internacional instalada no Brasil no período da Segunda Guerra Mundial. A formação dessa rede possibilitou, entre outras coisas, uma das maiores experiências vivenciadas pelos agentes locais, em termos de troca de informações e de experiência e aquisição de expertises, levando à inovação das práticas e procedimentos utilizados na investigação, das técnicas de inteligência, monitoramento e espionagem e, sobretudo, de interrogatório, o que lhes permitiu potencializar as ações de vigilância, censura e repressão. Vejamos o que coloca este trecho do Relatório do Secretário de Segurança Pública de Pernambuco no ano de 1945:

A experiência da Segunda Guerra permitiu-nos um aprofundamento das práticas policiais com a entrada bem vinda de organizações internacionais como a Cristian Childre’s (sic) Fund. Inc. de Richomont – Estados Unidos, a Chritian (sic) e Nielsen, e o Bureau Central Nacional da Interpol em nosso Estado, fato de grande valia na preparação de nosso efetivo no combate aos agentes externos nocivos à ordem.(Fundo.SSP/DOPS/APEJE. Prontuário Funcional n. 28.569 – Espionagem).

Tendo em vista o sucesso da operação conjunta realizada nos anos 1940, a partir de 1964 a experiência seria reeditada, tomando por base o binômio Desenvolvimento e Segurança Nacional propagado pela Escola Superior de Guerra, cujo modelo exigia a ampliação do intercâmbio entre as Secretarias de Segurança Pública do país, as Forças Armadas e os organismos de informações locais e nacionais, com o “eficiente” apoio internacional da CIA e FBI.

O conhecimento e orientações recebidos em cursos e manuais de operações militares, disponibilizados pelos agentes federais americanos aos agentes federais brasileiros, possibilitaram o treinamento do corpus policial em âmbito nacional. Vale acrescentar que recebiam treinamento aqueles que eram indicados por seus superiores e/ou escolhidos minuciosamente pelo perfil, que incluía bom preparo físico, coeficiente de inteligência e boa aparência. Em alguns momentos se buscava um tipo elegante, sociável; em outros, um agente de aspecto comum, um “homem do povo”, que não aparentasse semelhança com um policial nem em seus gestos, nem em suas feições, para não despertar suspeita pelos serviços prestados. Após o treinamento, todos deviam retornar às suas unidades e repassá-lo aos agentes e investigadores especializados dos vários órgãos de segurança espalhados pelo país. Este fato demonstra a fonte de capacitação dos agentes nacionais e destaca o nível de circulação de uma informação técnica especializada, que tem precedentes em acordos militares feitos entre o Brasil e os Estados Unidos –  a exemplo da Lei de Assistência e Defesa Mútua, assinada em 1949 e base do programa intitulado Ponto IV , cujo teor caracteriza o que a América Latina representa para os Estados Unidos enquanto fonte de recursos do solo e subsolo[5].

Na década de 1950, novos acordos firmados entre os dois países ampliaram as diretrizes do acordo citado acima e ainda criaram as bases para a Lei de Segurança Mútua, assinada em 1952. Faz-se importante destacar que na base desses acordos estava a defesa interna e externa do país e da soberania nacional, amparada na lógica de defesa continental e apoiada pelos Estados Unidos, que contempla a proteção do tráfego marítimo e a defesa do território contra o inimigo comum – o comunismo.

Percebe-se, assim, a importância que o período da Segunda Guerra Mundial representou para Pernambuco, entre outros aspectos, para a qualificação técnica do corpus policial – sobretudo nos serviços de inteligência e do trato da informação, que adquire uma atenção especial em todo o aparato de sustentação político-ideológica iniciada na Era Vargas e especializada no regime de exceção instalado no país nos idos de 1964.

A informação constituiu-se assim num tipo específico de poder, um entre tantos outros artifícios usados para o controle disciplinar da sociedade, para a manutenção da vigilância e para a alimentação do ideário de combate às ideias contrárias ao governo, fossem de esquerda ou de direita, mas sobretudo para salvaguardar os interesses americanos no país, servindo como um importante pilar de sustentação do regime civil-militar que seria implantado no Brasil nos anos seguintes.

Mais uma vez, vale sublinhar que um dos traços marcantes da (o) DOPS, desde o ano de sua criação (1935) até o ano de sua extinção (1990), foram as constantes alterações em sua estrutura administrativa e em seu regimento interno, realizadas em virtude das demandas do contexto político nacional e internacional. Deve-se considerar que o órgão tinha por obrigação exercer o monitoramento de um universo extremamente complexo como a sociedade e que, para dar conta desta tarefa, precisava basear-se na coleta e produção de informação, gerando “provas” que justificassem e legitimassem o controle social. Portanto, as constantes mudanças em sua estrutura visavam a aumentar sua eficiência e potencial de autonomia para agir na vigilância, controle e combate aos crimes variados, fossem de ordem política (controle e vigilância externa) ou de ordem social (controle, vigilância e repressão interna, coibição das greves, manifestações, do comunismo, etc.), para

corresponder in totum às aspirações daqueles que desejam extirpar do nosso País as idéias totalitárias de esquerda e de direita, que prejudicam a sobrevivência da democracia. (Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário Funcional n. 29.638. Doc. 116. 1938-1942).

Em linhas gerais, as funções da DOPS incluíam o controle de entradas e saídas do país, embarques e desembarques de passageiros nos portos e estações rodoviárias e ferroviárias, monitoramento das listas de passageiros dos navios, aeronaves e terminais de trens e ônibus, vigilância às casas de cômodos, hotéis, pensões e locais frequentados por estrangeiros, além do monitoramento das atividades dos partidos políticos, sindicatos, agremiações, clubes e associações para identificar possíveis focos de subversão ou atentado à ordem pública[6].

Por tratarem essencialmente do crime político e suas implicações, as experiências vivenciadas pela DOPS determinaram a construção do seu perfil administrativo e interferiram diretamente em suas práticas. Suas estratégias eram baseadas na vigilância, censura e repressão e amparadas na observação permanente da sociedade, através do uso da escuta telefônica, da interceptação de correspondências, da investigação sistemática de algum fato ou pessoa, da vigilância em locais suspeitos, do acompanhamento de determinadas pessoas e locais por investigadores, da invasão de células comunistas ou vistas como comunistas, “aparelhos”, ou qualquer local onde houvesse indícios de atividades subversivas aos olhos da polícia.

Essa “cultura” da vigilância chegou a atingir a própria polícia: o acervo dispõe de fichários incompletos com informações sobre investigadores, agentes, informantes e colaboradores que eram monitorados pelo órgão, os quais, entre outras funções, tinham que prestar contas de sua prática ao superior hierárquico imediato e este ao Secretário de Segurança Pública, geralmente sob a forma de relatórios, partes de serviço e boletins.

 

5. O Mapa da Vigilância e do Controle em Pernambuco

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A rede de vigilância se aprimorou, como vimos, no decorrer da Era Vargas, especialmente no período da Segunda Guerra Mundial, adquirindo uma importância e um significado imprevistos. A Delegacia de Ordem Política e Social passou a atuar no mapeamento de estrangeiros, sobretudo para rastrear as atividades que porventura pudessem atentar contra a soberania nacional.

A vigilância sobre a entrada e o controle de estrangeiros no país se intensificou por meio do acompanhamento de suas atividades e do fornecimento de salvo-conduto para transitarem no território nacional. As polícias políticas dos principais estados passaram a empreender maior vigilância e controle por mar, ar e terra, no combate à chamada “rede internacional de espionagem”, instalada em alguns países da América do Sul vizinhos ao Brasil, no sul do país e em Pernambuco.

Neste cenário, o Recife se modificou, com a entrada e trânsito de um número considerável de estrangeiros. É importante acrescentar que, além de funcionários alemães, contratados para trabalhar nas fábricas da Companhia de Tecidos Paulista, na tecelagem Othon Bezerra de Melo e na Fábrica de Cigarros Lafayette, cujos escritórios funcionavam na Rua do Imperador, mediante a ameaça de guerra, instalou-se no Recife, por tempo indeterminado, a 4ª Esquadra Estadunidense do Almirante Jonas Ingren, com uma tropa de mais de 1.000 mil homens distribuídos nas bases navais do Recife, Fernando de Noronha e Rio Grande do Norte (Prontuário Funcional nº.27.597). Foi neste contexto que a Rua Imperador, endereço também dos cafés Lafayette (Prontuário Funcional nº5585), Cristal e Colonial, situados a poucas quadras do Grande Hotel (Prontuário Funcional.nº7837), onde se hospedava uma clientela ilustre e abastada, constituiu-se em um pólo de diversão, “troca de informações” e espionagem.

Para atender à crescente demanda provocada pela presença de trabalhadores estrangeiros, fugitivos da Guerra, marinheiros, fuzileiros e servidores da Defesa Passiva Antiaérea, ocorreu um significativo incremento na cena artística e do circuito de diversão noturno recifense, evidenciado pela oferta de shows e espetáculos em teatros, cinemas, cassinos e cabarés, pela disponibilidade de casas de cômodos e outros tantos empreendimentos e atividades empenhadas em proporcionar programas lúdicos e amorosos que esquentavam ainda mais as noites da cidade. Este expressivo contingente de pessoas circulando pela capital pernambucana, mormente usufruindo da vida boêmia da área do porto e de seu entorno, significou mais trabalho e vigilância para os agentes da DOPS-PE.

Um dos resultados do controle social conexo à movimentação cultural mencionada acima consistiu no fichamento de artistas em trânsito pela cidade, daqueles que propagavam novas ideias e comportamentos; homens e mulheres, que em razão de suas origens ou da natureza de suas atividades laborais, não passavam despercebidos pela polícia. Ao contrário, na lógica de suspeição, todos eram considerados culpados até que provassem o contrário.

Devido aos registros produzidos pela DOPS/PE relacionados a esses artistas, fornecendo inclusive dados sobre os espaços nos quais eles trabalharam, contamos hoje com um interessante repositório de documentos sobre personagens que circularam pela noite do Recife, indicando um luxurioso passado animado por músicas, bebidas, danças e diversão, com novos costumes e práticas permeando o tecido social.

Com o objetivo de ampliar o controle social exercido pela DOPS-PE, em 1939 o Comissário Amaro Carvalho de Siqueira e o Delegado Edson Moury encomendaram um misto de organograma e fluxograma. O desenho elaborado por F.J. Lauria nada mais é senão o Mapa da Vigilância e do Controle em Pernambuco. De dimensões ampliadas e com um detalhamento preciso, a fonte documental é bastante elucidativa, apontando para um conteúdo riquíssimo em relação às atividades de monitoramento do social, desenvolvidas e postas em prática durante a Segunda Guerra Mundial.

Se não representa o funcionamento da DOPS/PE  ao longo de todo o período de sua atuação, traduz-se em um importante indício de como o órgão enxergava e que entendimento tinha sobre os diversos segmentos sociais, de modo a melhor exercer suas práticas de controle e vigilância, numa demonstração de que já detinham um alto nível de infiltração nas entranhas do tecido social muito antes de sua transformação em Departamento, a partir de 1961, e de seu fortalecimento no período pós-1964.

O que chama atenção também no documento é a posição que ocupam as Forças Armadas em toda a estrutura, destacando-se entre as instituições e segmentos configurados, o que demonstra uma posição estratégica de comando e ascendência perante a hierarquia estatal antes mesmo do regime ditatorial instalado no Brasil em 1964.

A existência de um documento desta envergadura, cujo acesso só foi viabilizado após a abertura dos arquivos da(o) DOPS, possibilitou sobretudo a compreensão do modus operandi da rede de informações do órgão, cujas bases de atuação junto ao social permitiram o monitoramento, a vigilância permanente de todo o corpus social de forma articulada, demonstrando como funcionava, na prática, a engrenagem de poder dos órgãos de vigilância no processo de cerceamento das liberdades. O mapa merece uma análise pormenorizada, por configurar o poder de alcance e articulação desse organismo policial que durante décadas monitorou as atividades e a vida dos indivíduos.

 

6. A estrutura burocrática e o funcionamento do arquivo da DOPS-PE

foto policia

É importante destacar que, durante todo o período de atuação da DOPS em Pernambuco, o cuidado com o acervo e o controle das práticas de coleta e manipulação das informações coube ao Chefe do Arquivo Geral, Julio de Barros Vasconcelos, que durante décadas exerceu com eficácia a guarda e o tratamento das informações, do acervo e das atividades do arquivo referentes à lógica de controle e vigilância. Este aspecto promoveu algo que em arquivologia se destaca: a preservação da estrutura informacional, possível graças à manutenção das rotinas e procedimentos no tratamento e no arquivamento das pastas e fichários, de modo a mantê-los em perfeito funcionamento para servir melhor aos agentes de vigilância no exercício de suas atividades de investigação, censura e repressão.

A imagem disponibilizada acima retrata o corpo de funcionários da DOPS-PE, composto por dezoito pessoas, entre elas, investigadores, delegados, comissários e informantes –  atuantes no período de 1947 a 1961, época de grande transformação no órgão em razão do período de Guerra e da criação da Delegacia Auxiliar – que entre outras funções, também investigava a DOPS e seus agentes.

Observa-se na imagem o perfil dos agentes e o ambiente de trabalho, o mobiliário composto por arquivos e mapas para identificação das áreas consideradas críticas e que, portanto, mereciam mais monitoramento por parte da polícia. Enfim, a imagem apresenta o palco de atuação do órgão de informação em Pernambuco e registra um raro momento: aquele em que a polícia mostra sua face.

Aos agentes e comissários que atuavam na DOPS-PE cabia a responsabilidade pelas atividades internas e externas. Processavam e manipulavam as informações por meio de um rigoroso ritual de coleta e mapeamento dos dados, nomeação das categorias de crime, catalogação dos assuntos de que tratava cada informe e cuidados com o arquivamento. No extremo oposto a este serviço especializado e burocrático exercido pelos agentes policiais, estavam os informantes e colaboradores anônimos, que delatavam pessoas “suspeitas” ou em situação de suspeição, contribuindo enormemente para a investigação e a fiscalização silenciosa da sociedade. A articulação entre essas duas frentes de “atuação” formou uma grande rede de informações.

O efetivo da DOPS-PE vinculado ao setor do arquivo era responsável, entre outras funções, por gerenciar os serviços de prontuários em geral, dos arquivos de documentos, informações e comunicações, fichário em geral, relações e listagens, serviço de recortes de jornais, assentamentos dos funcionários da delegacia, controle de endereços, salvo conduto para estrangeiros, índices, prontuários e fichas, fichários e controle das organizações políticas em geral; índice de prontuários das associações de classes, dos municípios, dos estados e dos países, índice dos prontuários dos comissários, investigadores, e escrivães da capital; índice e prontuários de artistas teatrais, informações e requerimentos; confecção de boletins de sindicâncias e emissão de informações em processos de naturalização; busca em relações de aviões e navios; encadernação de jornais comunistas e de outros temas, ofícios e telegramas; biblioteca; arquivo de ofícios e documentos em geral; informações em geral[7]. Estas eram compreendidas como atividades vitais na sustentação da rede de informações e segurança.

É assim que se apresenta, numa primeira perspectiva, a ação desses oficiais da informação, que, no exercício direto de suas atividades, produziram e apreenderam um farto e diversificado acervo, composto de documentos iconográficos e textuais, presentes nos prontuários individuais e funcionais, que serviram, como já foi dito, como elemento de prova para o enquadramento de indivíduos.

Essa mecânica dos registros, do tratamento da informação, sinaliza uma forma, uma modalidade de organização do poder enquanto saber, na arte do diagnóstico, da análise, do acompanhamento, da classificação e confecção das peças informacionais a serviço da repressão. Coloca os indivíduos num campo de vigilância e enquadramento permanente,

graças a todo esse aparelho de escrita, que o acompanha, o exame abre duas possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável (…). A importância  decisiva, conseqüentemente, dessas pequenas técnicas de anotação, de registro, de constituição de processos em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente, e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa “população”. (FOUCAULT, 1993 p. 169).

Deste modo, a especialização da polícia política no trato dos crimes de ordem política e social no Brasil se configurou na década de 1930. Todo o treinamento e aparelhamento dessa polícia especializada passaram pela noção de como tratar e coibir os abusos cometidos por uma nova ordem de práticas, que correspondiam ao crime ideológico e contra os costumes. A experiência dessas práticas ficou impregnada no tecido social, passando a configurar um tipo específico de poder e criando uma tradição na administração pública que até hoje se manifesta, apesar da mudança dos tempos.

Pernambuco, enquadrado como o terceiro maior foco comunista do país, recebeu diretamente de Felinto Müller, chefe da Polícia Federal do governo Vargas, orientações que deveriam permear a ação policial no controle da ordem política e social no estado. A Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) atuou, enquanto polícia política, no controle do crime ideológico. Por crime ideológico entendem-se os “crimes” baseados na perversão das ideias, ou em ideias consideradas permissivas, “perigosas”, “malditas” – nas palavras de Maria Luiza Tucci Carneiro, aquelas que infringem o instituído; nas palavras dos censores da SSP/PE, as que corrompem a “ordem natural das coisas”, a própria governabilidade. Durante os governos autoritários, tanto no Estado Novo como no estado de exceção implantado no país em 1964, um dos signos mais temidos e o principal objeto de combate por parte dos órgãos de repressão foi o comunismo, utilizado para taxar de subversivos aqueles que simpatizavam com essas “idéias perigosas”[8]. Em épocas distintas, portanto, observa-se uma frequente recorrência da DOPS ao Partido Comunista como motivação para empreender ações de vigilância, censura e repressão.

No entanto, o próprio aparato repressivo passou a ser alvo de enganos, de crimes, apontando que, mesmo com a existência de um cerco de vigilância, não se estava livre de atitudes fraudulentas ou de ser ludibriado. O Prontuário Funcional nº. 31.348, sobre o caso de um homem que se afirmava agente da polícia do Rio de Janeiro a serviço em Pernambuco, é um bom exemplo. As investigações deixaram claro que o “epigrafado” era tão somente um estelionatário que passou por várias delegacias se fazendo de agente especial, tirando inúmeros proveitos da situação e agindo desordeiramente na cidade, através do uso de documentos falsos.

O interesse do caso citado reside na constatação de que as ações dos indivíduos são imprevisíveis, mostrando que os “poderes” não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. “Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. (FOUCAULT, 2000; p. 6)”[9].O universo informacional presente no acervo construído pela(o) DOPS-PE permite perceber essa dimensão do imprevisível como contraponto ao controle, em que a manifestação das táticas repressivas junto ao social também denuncia a existência de um território das práticas gazeteiras (CERTEAU, 2002), onde a história ainda está por se constituir e que fazem dos agentes, algozes da vigilância e do controle, presas da própria trama histórica.

O acervo da(o) DOPS-PE, ao mesmo tempo, oferece fragmentos de memórias de um tempo que foi silenciado e apresenta-se como excelente contribuição ao conhecimento da história do Brasil Republicano, por meio deste rico legado informacional como prova dos feitos para as atuais e futuras gerações. Sua existência motiva a realização de projetos, a exemplo d’O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, expondo pistas, rastros de uma história que nunca se esgota – ao contrário, se ressignifica – ao permitir novos olhares sobre os acontecimentos de tempos idos.

 

[1] Fonte: Fundo: Documentos Impressos – APEJE. In, Legislação Estadual de Pernambuco Lei nº 71 DE 23/12/1935. . Coleção de Leis e Decretos de Pernambuco Recife: Imprensa Oficial, 1935-1937.

[2] Silva, Marcília Gama. Informação Repressão e Memória: a construção do estado de exceção no Brasil de 1964-1985, na perspectiva do DOPS-PE. Ed. Universitária da UFPE, Recife, 2014.

[3] Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário Funcional n. 29.638. Regimento interno da DOPS do ano de 1938 e Documentos Administrativos da Delegacia Auxiliar e  DOPS. 1938-1985.

[4] SILVA, Marcília Gama. A Rede de Espionagem Internacional instalada em Pernambuco na Segunda Guerra Mundial. Pesquisa em andamento desde 2004, no Apeje. Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário Funcional n. 28.329

[5] O acordo prevê, entre outras coisas, que o Brasil deverá ser o fornecedor de matéria-prima aos EUA, e em troca receberá capitais americanos em investimentos realizados em várias áreas, capazes de empreender o desenvolvimento do país a médio e longo prazos. (MOURA 1990; PAGE, 1972).

[6] Cf. Fundo SSP/DOPS/APEJE. Prontuário Funcional n. 29.638 – Documentos Administrativos do DOPS.

[7] Fundo SSP/DOPS/APJE. Prontuário funcional Nº 29.638 – Delegacia Auxiliar.

[8] CARNEIRO, Maria Luiza Tutti. Livros Proibidos, Idéias Malditas. O DEOPS e as Minorias Silenciadas. 2ª ed. São Paulo. Ateliê Editorial, 2002.

[9] FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder. Graal Rio de Janeiro, 2000 P.6.

 

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