Engajar corpos alheios, alhear corpos engajados.
A singularidade de O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, projeto de publicização de um arquivo policial ligado a regimes ditatoriais brasileiros, é lidar com o entendimento histórico sobre modos de vida que foram arbitrariamente identificados pela categoria “artista”. No contexto da DOPS, para além daquilo que se convencionava designar como arte, “artista” indicava uma série de “desvios” e uma rede de práticas sensíveis e políticas que escapavam às normas funcionais do trabalho e, portanto, dos padrões sociais de comportamento.
Por sua especificidade, à absoluta relevância do projeto O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos – em sua denúncia da fragilidade das políticas de acesso à memória e às verdades sobre as ditaduras do Brasil – soma-se uma clara compreensão da importância de abordar essa documentação numa perspectiva alargada, na qual pesquisa e difusão se colocam para além dos referenciais que habitualmente circunscrevem esse tipo de arquivo. É nesse lugar que se insere a Convocatória Artística do projeto, destinada a artistas ou quaisquer interessados em pensar crítica e sensivelmente dimensões históricas, culturais, políticas e sociais que atravessam ou tangenciam a história desse fichário da DOPS/PE e dos sujeitos, práticas e espaços por ele mapeados.
Por meio dos trabalhos escolhidos através da convocatória, refletimos sobre um desafio posto para processos artísticos que se relacionam com contextos documentais: como ativar poética e contemporaneamente um arquivo, sem que isso signifique atualizá-lo ou traduzi-lo? Como se inserir em projetos interdisciplinares, compostos por diferentes profissionais e modos de leitura e interpretação desta documentação, sem atribuir aos artistas a tarefa da ilustração?
Estas questões, que atravessaram o processo de acompanhamento e interlocução das três artistas que aqui serão apresentadas, foram partilhadas por todos os participantes do projeto e desdobram-se de diferentes maneiras no desenvolvimento do conjunto intitulado Vaga, de Irma Brown (PE) [em colaboração com Moacyr Campelo (PE)]; no Folhetim dos Encontros, realizado por Juliana Borzino (RJ); e na performance Teta Lírica, de Marie Carangi (PE). Trabalhos que articulam vida, memória, arquivo, corpo e cidade.
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Se a dimensão mundana é aquilo que criminaliza os indivíduos e espaços fichados como artistas pela DOPS/PE – personagens da noite, lutadores de rinha, cantores, poetas, travestis, imigrantes, prostitutas, artistas de circo, bares, pensões, teatros –, o mundano é o que, por sua vez, qualifica e inspira a ação de Irma, Juliana e Marie. Enquanto a pesquisa histórica do projeto lidou fundamentalmente com a dimensão obscura do fichário, instituindo formas de transparecê-lo, a Convocatória Artística parece de fato ter-se apropriado daquilo que, sendo do fichário, é eminentemente do mundo. A ação das artistas potencializa o mundano do fichário, no fichário e para além dele ao mundanar como modo de vida e de criação.
A ligação com a dimensão-mundo do Recife, já ordinária à vida de Marie Carangi e Irma Brown – cuja relação e sentido da arte são indissociáveis de uma rede de amizade e trocas que se dão num circuito de bares, espaços independentes e de invenção de formas de ocupar a cidade – foi também vertebral ao projeto de Juliana Borzino, que se lançou, extraordinariamente, numa imersão em Recife que, num encontro com a cidade, foi também um mergulho na história de sua família através da evocação de lembranças e da exploração de arquivos institucionais e privados. A partir de diferentes motivações, as artistas percorrem os interstícios do Recife de forma mundana, tocando corpos, memórias, lugares, sem, todavia, desejarem elaborar uma imagem unívoca do universo no qual se lançam, ordinária ou extraordinariamente.
A própria condição de incompletude do fichário de artistas da DOPS/PE – e por quê não da ideia de arquivo? – impossibilita uma leitura mais abrangente desse período, mas por outro lado mantêm em aberto, e pulsantes, os devires cuja intangibilidade o repressivo gesto do fichamento um dia quis disciplinar. Articulados, o mundano e o incompleto instauram um modus perceptível nos três projetos, cujas forças são a afirmação de poéticas e políticas do corpo, da cidade e da ficção.
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Teta Lírica (2016), de Marie Carangi, é uma performance na qual a artista realiza um concerto a partir do movimento de seus seios diante de um teremim. Performance que se dá em palcos em desuso da cidade (um coreto e uma concha acústica), variando entre uma apresentação solitária para um público inexistente e um solo, para um público passante. Com o corpo recoberto por uma malha preta, que deixa à mostra, através de buracos, somente os seios, de botas e sem recursos cênicos como maquiagem, penteados ou adornos, a artista evidencia um corpo eminentemente político, cuja nudez crua, de movimentos agressivos, faz com que escape a eventuais leituras erotizantes do trabalho.
Longe da utopia do corpo livre, que nos anos 1970 teve no auge do topless um marco político, as tetas de Marie Carangi tampouco reafirmam a hipótese da arte como ‘livre expressão’. A dimensão convulsiva da sua coreografia afasta a performance de uma ideia de liberdade hedonista, aproximando-a, por sua vez, da performatividade da luta. Gestos rápidos, precisos e rígidos marcam a coreografia angulosa de uma nudez repleta de arestas sociais, cuja liberdade não está dada como condição natural, mas é sobremaneira uma continuada luta pela desopressão. Na versão em vídeo da performance, realizada numa concha acústica, o preto do traje da artista contrapõe-se à brancura do fundo contra o qual se coloca, ressaltando uma arquitetura que é misto de utopia e falência de um projeto de modernidade.
Esse contraste entre preto e branco, figura e fundo, torna quase gráfico o movimento do corpo de Marie que, visto à distância, não apenas não se permite erotizar como também maquiniza-se. Corpo-máquina que realiza um concerto solitário com um dispositivo que produz som a partir da simples presença, prescindindo do toque. Trata-se de um concerto composto por corpos-máquina – a artista e o teremim – numa partilha de espaço que tem, na fronteira entre corporeidades, seu lugar produtivo.
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Outra dimensão do corpo, atrelada à cidade, surge em Vaga, projeto de Irma Brown. A artista reúne e provoca, em quatro vídeos, situações de deriva pelo Recife, nos quais vivencia diferentes momentos e perspectivas da cidade, perpassados por um cotidiano em primeira pessoa, pela conjuntura política atual, pela emergência das agendas feministas e pela experiência de uma ação política no mundo a partir da arte. Caracterizados por uma “linguagem crua” – imagens captadas, em sua maioria, por câmera de celular –, os vídeos compartilham e convocam um modo de estar na cidade. A noite, os caminhos, os amigos, os encontros, as manifestações, os bares, os monumentos, o rio, dentre outras situações que aparecem nos vídeos de Irma Brown, compõem uma vida na cidade, numa experiência que singulariza a versão cartográfica da urbe. Singularização que se dá através da artista, sujeito de seu conjunto de vídeos por ser deles, simultaneamente, protagonista e perspectiva.
Assim como os corpos do fichário de artistas da DOPS/PE possibilitam – através de suas pouco conhecidas trajetórias e biografias – que imaginemos outras histórias para o Recife, ao dispor abertamente seu corpo à cidade, Irma Brown torna possível que, por meio daquilo que manifesta, vislumbremos o desenrolar de uma história política que, por sua vez, é tecida a partir de micronarrativas. Sua poética ordinária consiste no caráter indissociável entre o público e o privado, entre o intervir e o estar no mundo. Nesse sentido, as urgências feministas, por exemplo, passam pelo seu corpo que, saído da Marcha das Vadias, permanece nu ao adentrar uma igreja, numa atitude tão iconoclasta quanto aberta ao inesperado dos encontros.
Buscando o Recife que reside no fichário, advém a necessidade de identificar os espaços da cidade por ele mapeados, encontrando o que, reconfigurado, resiste ao tempo e à repressão. Em colaboração com Moacyr Campelo, o projeto Vaga se estende a uma intervenção sobre os prédios que no contexto do arquivo figuravam como estabelecimentos de usos sociais tomados por suspeitos. Os artistas colam – sobre as fachadas do que um dia foram pensões, cassinos, bares, espaços de lazer e festas – lambe-lambes que reproduzem e rearranjam as fichas e todo conjunto de evidências que corroboravam a criminalização das pessoas e lugares. Com isso se revelam não só as camadas de tempos que conformam a cidade, como se reverte o gesto político do rótulo que – usado pela DOPS como forma de repressão – é por sua vez retomado pelos artistas como estratégia de denúncia, de informação e de liberação de subjetividades em estado de invisibilidade.
Nesse contexto, a afetividade é preponderante. Do amor pela cidade às relações de amizade, passando por um erotismo implícito, da euforia à melancolia. Da afecção coletiva da ocupação das ruas à solidão da experiência do aborto, é a cidade cúmplice, mesmo quando em ruínas, que tudo perpassa.
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Já o encontro com a cidade vivido por Juliana Borzino é marcado pelo caráter de incompletude da memória e do arquivo. No Folhetim dos Encontros, a artista entrecruza ficcionalização e arqueologia para criar uma publicação inspirada por um folhetim outrora distribuído pela loja de seu bisavô pernambucano, a Livraria Mozart. Diversamente à versão da livraria, dedicado a personagens e eventos da cidade, Borzino vai ao encontro de uma cidade experimentada por entre momentos de coletividade e recolhimento. Sua narrativa soma-se a uma iconografia que mistura pesquisa em arquivo e produção de imagens.
Diferentemente da centralidade do corpo do artista visto nos trabalhos de Irma Brown e Marie Carangi, este elemento perde o protagonismo na publicação de Juliana, que num flerte com o obscuro, toma o anonimato se torna modo de ação, privilegiando a ficção, forma de criar inteligibilidade ao desejo de desarquivar a vida do seu avô, relacionando história pública e familiar até que esta tome contornos e proporções de história da cidade.
Na ficção de Borzino, escrita ao longo de sua imersão em Recife, múltiplos tempos e vozes se articulam. Pesquisas em diferentes acervos, conversas com familiares e desconhecidos, encontros inesperados, lugares, sensações, lembranças que marcaram suas derivas pela cidade, levaram-na a achar, descobrir, conhecer e, na mesma medida, inventar. A busca por referências da Livraria Mozart a conduziu a equivalências entre o próprio e o apropriado, o documento e a ficção, o lógico e o intuído, o lendário e o verídico – elementos combinados na produção de um texto poético que amalgama fatos históricos à dimensão fantasmática da história.
Na medida em que se lança na missão de recolher e organizar memórias alheias, o folhetim une o que é possível lembrar, ao que se convém esquecer. Polifônico, o texto costura percepções que parecem pertencer a uma única voz cuja autoria ou lugar de enunciação não se revela. O que faz do texto do folhetim, fundamentalmente, uma escrita de fluxos e intensidades.
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“É favorável atravessar a grande água”, indica Borzino na página de abertura do Folhetim dos Encontros. A afirmação, apropriada do oráculo I Ching, revela a dimensão dada pela artista ao seu desafio com o projeto: tratava-se, evidentemente, de uma missão. Como tal, foi preciso engajar-se. Borzino, Brown e Carangi engajaram-se com O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos desde o ponto de vista de um mergulho dedicado no seu arquivo, ao engajamento político, atual e urgente, perante as violências que o possibilitaram e alimentaram.
Interessa-nos ressaltar o fato de serem mulheres as três artistas selecionadas, como também considerar o dado de que 60% das fichas da DOPS/PE são relativas a mulheres, tantas vezes criminalizadas pelo exercício de sua sexualidade, trabalho, posição política, interlocuções ou simplesmente por viverem em trânsito. A identificação entre as mulheres do projeto, as fichadas e as selecionadas, parece ter propiciado – num momento em que o debate do feminismo se radicaliza e transborda seus tradicionais nichos – uma exacerbação da experimentação, da indisciplina e do desejo de agir a despeito da persistência e da atualização de formas de normatizar gêneros e naturalizar violências.
Para essa identificação concorreram movimentos de engajamento e alheamento, presentes nos trabalhos resultantes da Convocatória Artística. Os vídeos de Brown modulam a presença em manifestações a deambulações na noite recifense. Lançando-se na cidade, Borzino encontra, no desconhecido, a chave para o compromisso de imaginação que a liga a Recife. Carangi desestabiliza a ideia de nudez com seu modo dissonante de imbricar o corpo. E, assim, alheando corpos engajados e engajando corpos alheios, reafirmam o direito ao mundano.
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